O Globo, n. 31494, 29/10/2019. Mundo, p. 22

Tensão com Argentina preocupa congressistas

Eliane Oliveira
Maiá Menezes


A declaração em que o presidente Jair Bolsonaro lamentou a eleição do peronista Alberto Fernández na Argentina e disse que não iria cumprimentá-lo pela vitória, feita durante sua viagem ao Oriente Médio, foi criticada ontem por parlamentares das comissões de Relações Exteriores do Senado e da Câmara. A avaliação de governistas e opositores é que a atitude do presidente não pode se sobrepor ao diálogo entre os dois maiores sócios do Mercosul.

A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, depois de China e EUA, e o maior comprador de produtos industriais brasileiros. Fernandéz recebeu felicitações dos EUA e de lideres sul-americanos de distintas orientações políticas. Bolsonaro, no entanto, que fez campanha pela reeleição de Mauricio Macri, mostrou-se irritado porque, no domingo, o peronista pediu a libertação do expresidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado por corrupção e preso há 18 meses na Polícia Federal em Curitiba.

— Eu lamento. Não tenho bola de cristal, mas acho que os argentinos escolheram mal. O primeiro ato do Fernández foi Lula livre, dizendo que ele está preso injustamente. Já disse a que veio, sem contar que tem gente de esquerda lá. Não vou cumprimentar. Mas não vamos nos indispor. Ele vai assumir, vai tomar pé do que está acontecendo evamos ver comovais e comportar—disse Bolsonaro de manhã em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes.

Na mesma linha, o chanceler Ernesto Araújo, que acompanha o presidente, disse em uma rede social que “as forças do mal estão celebrando” a eleição de Fernández .“As forças da democracia estãol amentando pela Argentina, pelo Mercosul e por toda a América do Sul. Mas o Brasil continuará do lado da liberdade e da integração aberta”, escreveu.

— Eleições em países vizinhos não nos dizem respeito. Temos um fluxo importante de comércio coma Argentina nas manufaturas e isso pode nos atrapalhar. Temos que unir forças par abrigar contra o desem pregoe a fome que asso laos brasileiros—disse a senadora Kátia Abreu(PDT- TO ), que foi ministra da Agricultura de Dilma Rousseff.

O líder do PSL no Senado, Major Olímpio (GO), ponderou que o gesto de Fernández em defesa de Lula foi “desnecessário”, mas defendeu responsabilidade, “para não gerar prejuízo às nações”.

— Posso não ter gostado do resultado da eleição. Contudo, os dois presidentes saberão se respeitar. Os dois países estão numa situação bastante complicada, e ninguém vai querer atrapalhar a vida um do outro —disse.

O vice-presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Marcos de Val (Podemos-ES), acredita numa piora da relação:

— Até porque ganhou a eleição um governo de esquerda, em que a vice-presidente eleita [Cristina Kirchner] é acusada de corrupção. Mas o Mercosul é muito importante.

O senador Humberto Costa (PT-CE), disse esperar que os ânimos se acalmem eque Bolso na rore cu e ,“como fez em relação aos árabes, à transferência da Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém e à China, já que Brasil e Argentina são muito interdependentes para terem qualquer tipo de enfrentamento”.

Dúvidas sobre Mercosul

O governo Bolsonaro tem defendido a liberalização do Mercosul, de modo que os países-membros possam negociar separadamente acordos comerciais com terceiros. Se o governo quiser executar esse plano ou mesmo deixar o bloco, a interpretação mais comum é que poderia fazê-lo sem o aval do Congresso. Os

parlamentares, porém, poderiam aprovar decreto legislativo sustando a decisão.

À noite, na chegada a Riad, na Arábia Saudita, Bolsonaro mudou um pouco de tom:

— Vamos sentir como os empresários e gran desinvestidores vão reagir. Não quero fazer mau juízo. Espero que esteja equivocado oque penso. A bola está com eles. Vi imagens de petistas comemorando a eleição que é, na verdade, da Cristina Kitchner. É uma preocupação. Diga-me com quem andas e te direi quem és.

Fontes diplomáticas esperam que os ânimos se acalmem na transição de governo na Argentina, quando Macri poderá exercer um papel de conciliação importante, afim de preservar o Mercosul.

— É preciso uma mudança completa no discurso. A relação não pode ser contaminada pela desconfiança. A diplomacia não pode se transformar em coisa de comadres — disse o diplomata aposentado Marcos Azambuja, ex-embaixador na França e na Argentina.

Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda, acredita que o mau momento passará:

— Isso não é uma crise, mas uma questão ideológica dos dois lados. No fim do governo militar, o então presidente João Figueiredo não se dava com o argentino Raul Alfonsín. No entanto, assinaram acordos comerciais importantes. O determinismo geográfico vai fazer com que o bom senso prevaleça.