O Globo, n. 31494, 29/10/2019. Mundo, p. 21

Baixando as armas

Janaína Figueiredo


O primeiro gesto foi do derrotado, o presidente Mauricio Macri, que no próximo dia 10 de dezembro deixará o poder. O segundo, de seu rival nas urnas, o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, que no encontro entre ambos ontem na Casa Rosada, iniciativa do atual chefe de Estado, propôs não falar mais sobre o passado e focar no futuro. Será o começo de uma transição civilizada, algo pouco comum na História recente do país? É oques e perguntam muitos argentinos em meio a uma grave crise econômica, financeira e social.

Informações extraoficiais indicariam que sim. Ainda assim, mesmo com um início de transição mais pacífico do que o habitual, Fernández sai da disputa com desafios importantes à frente, que podem tornar-se obstáculos para implanastar sua agenda: falta de maioria na Câmara dos Deputados; a incógnita de sua relação com Cristina Kirchner, ex-adversária tornada sua vice; e um país mais polarizado.

Medida em conjunto

Macri e Fernández conversaram durante uma hora, prometeram estar em contato e estabelecer uma interação entre o Gabinete atual e os futuros ministros do governo que assume em dezembro. Já na noite de domingo passado, economistas da equipe do presidente eleito foram consultados sobre a decisão do Banco Central de limitar a US$ 200 as compras mensais, reduzindo drasticamente o limite que era de US$ 10 mil. Foi outro gesto de cooperação, parte de uma clara estratégia para acalmar investidores e a corrida ao dólar. Após as primárias de agosto, o BC injetou cerca de US$ 20 bilhões no mercado para conter a desvalorização do peso, enfraquecendo as reservas da instituição.

— O governo tem toda a predisposição para colaborar coma transição—declarou o ministro da Fazenda atual, Hernan Lacunza.

No encontro entre Macri e Fernández, também foi expressada a necessidade de preservara paz social nas seis semanas que ainda restam até a posse. Com o Chile às voltas com protestos, o presidente e seu sucessor selaram uma espécie de trégua que beneficie a ambos. Macri já se posiciona claramente como líder de uma oposição que terá um a bancada forte na Câmara e ase gunda maior do Senado, além de controlar quatro governos provinciais, de um total de 24. O presidente buscar reforçar seu perfil democrático e consolidar assim uma base que representa um terço do eleitorado.

Ontem, Fernández anunciou uma equipe de quatro colaboradores que administrarão equipes de transição. O jovem Santiago Cafiero, neto do histórico ejá falecido dirigente peronista Antonio Cafiero, será uma especie de coordenador principal ejá está cotado para ser o futuro chefe de Gabinete. A ex-vereadora portenha (e também ex namorada de Fernández) Vilma Ibarra, também foi escalada, além do kirchnerista Wado de Pedro, da tropa de Cristina.

As expectativas se misturam aos temores. Fernández ainda não antecipou medidas econômicas e, enquanto seus assessores trabalham em ritmo frenético, o presidente eleito já prepara viagens ao exterior, a primeira provavelmente ao México.

‘Macri não fez reformas’

Economistas liberais argentinos não estão surpresos pelo revés sofrido por Macri nas urnas. A opinião de muitos é de que o presidente não fez as reformas necessárias, demorou a entender a necessidade de equilibrar as contas públicas e, nesse caminho, não encontrou a maneira de preservar os setores de menores recursos.

— Macri recebeu um Estado à beira da falência e resolveu problemas graves, mas não fez as reformas estruturais que o país precisa. Achou que os investimentos viriam e nunca vieram —opinou Aldo Abram, diretor da Fundação Liberdade e Progresso.

A vitória de Fernández exige uma reflexão sobre programas de governos liberais que têm sido implementados em vários países da região. Essa é a opinião do economista Daniel Marx, que foi diretor do Banco Central, chefe negociador da dívida externa entre 1989 e 1993 e secretário de Finanças do governo Fernando de la Rúa (1999-2001). Diretor da consultoria Quantum, ele disse que “é preciso encontrar maneiras de compatibilizar a necessidade de equilibrar a macroeconomia com a de incorporar setores sociais”.

Marx foi um dos principais economistas da equipe de Domingo Cavallo em sua última gestão à frente do Ministério da Economia (a primeiras foi no governo de Carlos Menem, entre 1989 e 1999).

— Devemos pensar na incorporação de segmentos da população que precisam ser considerados — admitiu o economista.

Liberais e não liberais se perguntam como fará o peronismo aliado ao kirchnerismo para cumprir a promessa de “encher o bolso dos argentinos” num país que desde 2012 praticamente não cresce, perdeu novamente o acesso ao crédito externo e deverá renegociar sua dívida pública.