O Globo, n. 31494, 29/10/2019. Opinião, p. 2

Argentina e Mercosul são estratégicos



A confirmação da derrota de Mauricio Macri para Alberto Fernández e Cristina Kirchner à primeira vista parece mais uma das reviravoltas que costumam acontecer na América Latina em que forças políticas à direita e à esquerda se revezam no poder, em movimentos circulares decorrentes das oscilações da economia. O que ocorre agora na Argentina, porém, não é um simples mais do mesmo.

A persistência da deterioração econômica e social do país transforma a derrota de Macri e de seu projeto de reformas liberais — mal executadas —, para o peronismo, em uma aposta de alto risco da sociedade argentina. Uma inflação de 50% ao ano, recessão estimada em 3%, desemprego e pobreza elevados seriam mesmo difíceis de Macri superar na sua tentativa de reeleger-se. Mas a crise a ser enfrentada pelo próximo governo pode fazer com que a Argentina volte ao experimentalismo populista do kirchnerismo.

Há dúvidas sobre se um governo com Cristina K. como vice-presidente terá confiança pública e meios para enfrentar as dificuldades criadas nos 12 anos em que dividiu o poder com seu falecido marido, Néstor Kirchner. Ela assumiu em 2007, sucedendo a Néstor, e aprofundou o nacional-populismo kirchnerista, levando a Argentina, mais uma vez, a quebrar por falta de divisas.

Alberto Fernández, peronista moderado que se chocou com a presidente Cristina quando foi seu chefe de gabinete, precisa indicar de maneira clara quem será a pessoa forte no governo. Terá de esvaziar a suspeita de que sua posição de cabeça de chapa serviria apenas de biombo para o peronismo voltar ao poder, sem correr o risco de ter seu projeto de governo prejudicado pela impopularidade da ex-presidente e senadora, contra quem há graves denúncias de corrupção. Caso contrário, deixará a impressão de que, eleito Fernández, Cristina assumirá o poder de fato, para voltar a tentar as conhecidas e inviáveis soluções populistas a partir da posse, no próximo 10 de dezembro.

O presidente Jair Bolsonaro, seguindo a trilha aberta pelo adversário Lula, assumiu um lado nas eleições argentinas, em mais uma infração às tradições do Itamaraty de não ingerência em assuntos internos de outros países. Isso já havia sido feito pelo ex-presidente petista na Argentina, Venezuela, no Peru, Equador ena Bolívia, por exemplo. No seu estilo sem medidas, Bolsonaro apoiou Macri e fez duras críticas à chapa adversária. Chegou a ameaçar com a saída unilateral do Mercosul, uma ope sodo comércio com o bloco não só para o Brasil, como também o continente.

As economias brasileira e argentina já estavam em processo de integração antes da formalização do Mercosul, há 29 anos. Defender seu estilhaçamento por antipatia ideológica é contrariar o bom senso e, principalmente, os O comércio coma Argentina oscila em torno de US $15 bilhões anuais. É o principal mercado para bens manufaturados pelo Brasil e representa 60% das exportações para o Mercosul. É o terceiro parceiro comercial do país.