O Globo, n. 31493, 28/10/2019. Mundo, p. 17

Peronismo vence na Argentina

Janaína Figueiredo


 

Apesar de a Casa Rosada ter organizado uma nova e vigorosa campanha eleitoral após o revés sofrido nas eleições primárias de agosto, o presidente Mauricio Macri não conseguiu impedir a vitória de seu principal rival nas eleições realizadas ontem, o candidato da aliança entre peronistas e kirchneristas Alberto Fernández.

Não foi um triunfo esmagador, como esperava a aliança Frente de Todos, mas Fernández e sua companheira de chapa, a senadora e ex-presidente Cristina Kirchner (20072015), conquistaram, com quase 100% das mesas de votação apuradas, 47,8% dos votos, contra 40,7% do chefe de Estado. O ex-ministro da Economia Roberto Lavagna ficou em terceiro lugar, com 6,15%.

Para vencer a eleição no primeiro turno,é necessário alcançar 45% dos votos ou 40% com pelo menos dez pontos de vantagem em relação ao segundo colocado. Com o resultado, a centro-esquerda peronista volta ao poder, quatro anos depois da vitória de Macri sobre Cristina, que legou ao sucessor uma crise econômica que se agravou sob o atual presidente, apesar de um pacote de US$ 50 bilhões firmado em 2018 com o Fundo Monetário Internacional .

Pouco depois das 22h, Macri reconheceu a derrota em discurso e disse que já convidou o opositor para uma conversa sobre a situação do país:

— Parabenizo o presidente eleito Alberto Fernández. Acabei de falar com ele pela grande eleição que fez. Convidei-o para tomar amanhã (hoje) um café da manhã na Casa Rosada porque deve começar uma transição ordenada que leve tranquilidade aos argentinos.

O candidato peronista não deu uma surra no chefe de Estado, como fez nas primárias, quando ficou 17 pontos percentuais acima de Macri. Desde então, o presidente fez uma campanha intensa e conseguiu aumentar de forma expressiva os 32% obtidos em agosto, num país mergulhado em profunda recessão.

O macrismo também perdeu o governo da província de Buenos Aires, principal distrito eleitoral do país. O novo governador será Axel Kicillof, ex ministro de Economia do segundo governo de Cristina, com mais de 50% dos votos. Já na capital foi reeleito o macrista Horacio Rodríguez Larreta.

Numa campanha na qual a crise econômica ocupou um papel central — muito acima de questões como os escândalos de corrupção envolvendo ex-funcionários kirchneristas e até mesmo a ex-presidente e sua família —, Fernández foi uma revelação política com a qual o macrismo não contava.

A eleição foi acompanhada por enviados do PT como o ex chanceler Celso Amorim, entre outros; também estiveram com Fernández ontem o ex presidente do Paraguai Fernando Lugo (2008-2012) e o ex-premier da Espanha José Luis Rodríguez Zapatero. Na campanha, o agora presidente eleito visitou Luiz Inácio Lula da Silva na prisão, e ontem, no dia do aniversário do brasileiro, enviou mensagem através das redes sociais e fez o gesto de “Lula livre” com os dedos. Em seu discurso da vitória, Fernández voltou a mencionar Lula, “um homem injustamente preso”.

Os argentinos foram às urnas num clima de enorme polarização em toda a América do Sul — com protestos por reformas sociais e contra medidas de ajuste em Chile e Equador, a quarta reeleição consecutiva do presidente boliviano Evo Morales contestada pela oposição e a pior crise econômica da História da Venezuela. A vitória de Fernández tem o potencial de reconfigurar o balanço de forças na região, após uma série de vitórias eleitorais de forças conservadoras.

Preocupação com dólar

Foi um dia de muita ansiedade. Macri manteve até o final a expectativa de forçar um segundo turno para ter chances de reeleger-se. Após votar no Bairro Norte portenho, o chefe de Estado afirmou que hoje, seja qual fosse o resultado, estaria “trabalhando na Casa Rosada pelo futuro dos argentinos”. Já Fernández, que votou em Porto Madero, disse que “vamos trabalhar juntos, acabou o nós e eles”.

— Estamos vivendo uma enorme crise e temos de ser responsáveis —disse Fernández, tentando acalmar os ânimos dos que temem uma nova desvalorização do peso esta semana.

Mais tarde, já eleito, completou:

— Vamos colaborar em tudo o que possamos porque a única coisa que nos preocupa é que os argentinos deixem de sofrer de uma vez por todas.

Após as primárias de agosto, o dólar disparou, provocando, em consequência, o aumento do risco país e um forte reajuste de preços internos. Na noite de ontem, foi realizada uma reunião de emergência no Banco Central para avaliar medidas que poderiam ser adotadas nos próximos dias, caso a corrida ao dólar, acentuada nas últimas semanas, fique ainda mais intensa — o que preocupa o governo e, também, o peronismo.

O mercado teme que um governo peronista e kirchnerista faça mudanças radicais na política econômica, e há dúvidas sobre uma eventual renegociação da dívida pública, iniciativa que Fernández já antecipou. Mas a realidade é que a aliança não deu muitas pistas sobre seu programa econômico, e essa incerteza preocupa investidores dentro e fora do país.