O Globo, n. 31492, 27/10/2019. País, p. 11

Preservar ou explorar, um debate sem fim para índios

Camila Zarur


O debate sobre a exploração econômica das terras indígenas, uma das pautas do governo federal, é um assunto controverso que remonta à Era Vargas. Desde a primeira vez em que foi citado em um texto constitucional, em 1934, até os dias atuais, o uso de áreas de reservas indígenas é restrito aos seus povos. No entanto, algumas brechas na legislação reacendem a disputa pelo direito a essas terras. “Compete à União legislar sobre a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. É assim, com essas palavras, que os indígenas são citados pela primeira vez em um texto constitucional, em 1934, na Segunda República. Na época, eles eram vistos sob uma condição transitória, e que cabia ao Estado integrá-los à sociedade. Essa questão é explicada no livro “Os Índios na Constituição”, de Artionka Capiberibe e Camila Loureiro Dias.

— O Estado assumia uma política de assimilar o indígena à sociedade como se o Brasil fosse algo homogêneo. O termo “silvícola”, que era muito utilizado na época, tinha uma conotação negativa, como se fosse algo que passaria por um processo evolutivo —explica Camila, que é professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A Carta atual, de 1988, prevê aos indígenas o “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. O parágrafo faz parte de um capítulo específico aos indígenas que, além das áreas reservadas, também garantiu, pela primeira vez, que os costumes e tradições sejam reconhecidos. Isso não era previsto em textos constitucionais anteriores.

Essa visão permaneceu a mesma nas constituições seguintes, mudando apenas na de 1988, após uma mobilização dos povos indígenas, apoiados por grupos religiosos e sociais, iniciada uma década antes. O estopim para o movimento se deu após a tentativa do governo militar de criar um decreto de emancipação do índio que estivesse em contexto urbano. Para Camila, a medida abria uma brecha para que o Estado pudesse explorar as terras de reservas.

— O que estava por de trás disso era um interesse pelas terras indígenas. Desde a Constituição de 1934, já era garantido aos índios o direito à posse das terras em que, como diz o texto, “se achem localizados”. Porém, com a emancipação dos indígenas, eles perderiam esse direito, e a União poderia explorá-los. Então, eles travestiam de ideologia uma medida que tinha um caráter quase que exclusivamente econômico —explica a professora. Artionka conta ainda que, mesmo antes do decreto, diversas etnias já se reuniam, em meados da década de 1970, em assembleias para conter o avanço de obras estatais em áreas de reservas. Os encontros, que juntavam tribos de diversas partes do país, foram responsáveis pelo surgimento de um movimento indigenista que lutaria por seus direitos nos anos que se seguiram, principalmente, relacionado a suas terras.

— O impacto da expansão de estradas e da entrada nas áreas reservadas para exploração de madeira vai criando a esses grupos uma linguagem, de certa forma, em comum entre eles. Tinham muitas diferenças entre si, mas percebem também que muito de seus problemas são parecidos. Com o apoio da Associação Brasileira de Antropologia e, já nos anos 1980, do Conselho Indigenista Missionário, da Igreja Católica, esse movimento ganha força na tentativa de barrar essa tipo de intrusão e, anos depois, ser uma voz importante na Constituinte de 1988 —explica Artionka, do Departamento de Antropologia da Unicamp. Apesar da elaboração de um capítulo específico para os indígenas na Constituição, os embates para o uso das terras indígenas não cessaram. No próprio texto de 1988, há um parágrafo que abre uma brecha para a exploração dessas áreas, ao dizer que o aproveitamento dos recursos naturais em terras indígenas podem “ser efetivados com a autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”.

— Tem um cipoal jurídico em torno disso. Está previsto na Constituição que a exploração de minério nessas terras deve ser disciplinada por uma lei complementar. A proposta dessa lei foi feita em 1996, por uma figura já bastante conhecida da nossa política nacional, Romero Jucá, que na época era senador. Essa PL tramita até hoje no Congresso, mas que nunca conseguiu ser aprovada porque havia um embate interno que conseguia travá-la — explica Artionka.

Segundo a pesquisadora, as divergências sobre a exploração de terras aconteciam até mesmo entre instituições de governos, o que dificultava uma solução:

— A causa indígena vai atravessando décadas. Os problemas são mais ou menos parecidos, o tipo de exploração é que varia ao longo do tempo. Tivemos exemplos de embates desse tipo acontecendo entre o Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura, ou com o de Minas e Energia. Essa divisão interna nos interesses, entre explorar ou preservas as reservas indígenas, criavam um entrave nessas questões. Artionka, porém, se preocupa com a possibilidade de que a falta desses embates acarretem no avanço da exploração de terras e nas violações dos direitos indígenas.

— Se antes essa disputa interna no governo podia ajudar os povos indígenas face ao ataque massivo que vinha do Congresso Nacional, hoje, o ataque vem de todos os lados. E aí a gente vê uma progressão nesse processo — destaca.