O Globo, n.31.580, 23/01/2020. País. p.06

Bolsonaro suspende entrevistas: ‘Não posso agredir vocês’
Gustavo Maia 

 

Ao se negar ontem a responder perguntas de repórteres, o presidente Jair Bolsonar disse que não iria se pronunciar porque tem sido acusado de agredir os jornalistas. Ele se referia ao relatório “Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil”, divulgado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) na semana passada.

— Eu quero falar com vocês, mas a associação nacional de jornalistas diz que quando eu falo, eu agrido vocês. Como eu sou uma pessoa da paz, não vou dar entrevista. Não posso agredir vocês aí. Manda tirar o processo que eu volto a conversar — declarou o presidente na saída do Palácio da Alvorada, ao se aproximar da área reservada à imprensa depois de cumprimentar apoiadores.

Apesar de condicionar a retomada de entrevistas à retirada de um processo, Bolsonaro não explicou ao que se referia. A Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência informou depois que ele se referia ao relatório da Fenaj. A entidade, porém, não apresentou nenhuma ação na Justiça contra o presidente.

O relatório apontou que casos de ataques a repórteres e veículos de comunicação cresceram 54% no ano passado (saltaram de 135 para 208), e que Bosonaro foi responsável, sozinho, por 58% do total de agressões — seja por seu perfil no Twitter, lives ou entrevistas.

Na quinta-feira passada, ao ser questionado por uma repórter da “Folha de S.Paulo” sobre a permanência de Fabio Wajngarten na chefia da Secom — o jornal revelou que a empresa da qual ele é dono mantém contratos com emissoras de TV e agências que recebem verbas de publicidade do governo —, Bolsonaro afirmou que o veículo “não tem moral para perguntar” e mandou que a jornalista calasse a boca.

— Fora, “Folha de S.Paulo”, você não tem moral para perguntar, não — disse Bolsonaro, que após a insistência da repórter afirmou: — Cala a boca.

No Twitter, Bolsonaro publicou um vídeo no qual dava o recado ontem aos repórteres presentes. O material foi republicado por um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSLSP), que voltou a mencionar um processo. “Impressionante! Talvez o presidente que mais fale com a imprensa, que vai de peito aberto falar com os mais variados tipos de jornalistas sem acertar previamente as perguntas, este é exatamente o que é processado por associação de jornalistas por, acredite, atacar a imprensa...”, escreveu o parlamentar.


‘É um dever informar à sociedade os atos do governo’, diz Fenaj

 

A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, criticou ontem a decisão do presidente Jair Bolsonaro de suspender entrevistas e reforçou que a entidade não ingressou com nenhuma medida legal contra ele.

— A primeira coisa é que cabe a qualquer servidor público, e principalmente às autoridades públicas, cumprir o princípio da transparência e da publicidade. É um dever informar à sociedade os atos de governo. Não pode, a pretexto de intimidar uma entidade sindical, se recusar a dar entrevistas —afirmou.

Segundo Maria José, o que a Fenaj denunciou foi que Bolsonaro usa suas manifestações como pretexto para um ataque sistemático a veículos e profissionais de imprensa e, portanto, à liberdade de imprensa.

Para a presidente da Fenaj, Bolsonaro age estrategicamente para que seus apoiadores se coloquem contra o trabalho da imprensa e para que a população não busque se informar pelo noticiário. A dirigente da Fenaj afirmou ainda que está estudando quais medidas a entidade pode tomar para proteger os profissionais:

— Não é fácil processar um presidente da República, mas o que nós queremos é que cessem as agressões aos jornalistas. Se a nossa assessoria jurídica recomendar, a gente pode, sim, tomar essa medida legal.

No relatório divulgado pela Fenaj, 114 casos são de tentativas de descredibilização da mídia, que são a maioria dos ataques à liberdade de imprensa no Brasil. Essa categoria foi criada este ano, segundo a entidade, em razão da institucionalização das críticas, como, por exemplo, as feitas por meio dos canais oficiais da Presidência da República.