O Globo, n.31.580, 23/01/2020. Editoriais. p.02

Indiciamento de jornalista é afronta

 

A Operação Lava-Jato, lançada a partir de Curitiba em março de 2014, seria um marco histórico e atrairia apoiadores apaixonados e críticos ferozes. Não deixaria de causar ruidosas e duradouras repercussões uma força-tarefa criada entre Justiça, Ministério Público, Polícia Federal e Receita capaz de desmontar, entre outros esquemas de corrupção, aquele batizado de petrolão, montado dentro da Petrobras num conluio entre PT, legendas aliadas (PMDB e PP), empreiteiras e dirigentes da estatal. O caso se desdobrou em investigações e processos na Suíça, nos Estados Unidos e em vários países latino-americanos. Bilhões foram devolvidos ou pagos em multas pela estatal paranã o ser indiciada pela Justiça americana. Ume x-presidente da República, Lula, foi preso.

Ainda se sucedem implicações geradas pela Lava-Jato, como intensas escaramuças no Legislativo ena própria Justiça entre os que desejam domesticar uma repressão mais firme à corrupção e correntes que mesmo admitindo alguns exageros nas investigações querem preservara espinha dorsal deste modelo de trabalho contra orou bodo dinheiro público, inédito no país, eque vem sendo construído há muito tempo.

Dentro deste contexto, um procurador da República, Wellington Divino de Oliveira, do Distrito Federal, acaba de denunciar o jornalista americano Glenn Greenwald, radicado no Brasil, pela invasão de caixas postais de autoridades, dentro do sistema de mensagens russo Telegram. Greenwald, do site Intercept, recebeu de hackers, devidamente investigados e sendo processados, uma grande quantidade de mensagens trocadas entre o ainda juiz da Lava-Jato Ser gio Moro e procuradores, entre eles, Deltan Dalllagnol, chefe do MP na operação.

Há um debate e enorme divergência em torno da importância jurídica do material, sem dúvida usado por interessados em degradara imagem de Moro e ajudar investigados. Há também, deve-se reconhecer, quem de boa-fé se preocupa com o respeito aos espaços de privacidade e de atuação do Estado definidos pela Constituição. E há também má-fé.

Mas agora o que importa é rechaçar o ataque ao jornalista, protegido pelo direito de informar e do sigilo da fonte. Mesmo que ela já seja conhecida, é afrontoso tentar acumpliciar Glenn Greenwald com os hackers, com base em interpretações forçadas de frases soltas em diálogos travados entre Glenn e Walter Delgatti Neto, obtidos pela Polícia Federal. Que, por sinal, nada viu nas investigações que identificasse a “participação material” do jornalista nos crimes de interceptação e roubo dos diálogos.

É preciso separar o que é importante daquilo que só atrapalha o entendimento do que aconteceu. Investigar o que esteve por trás da invasão de privacidade e tudo o mais não pode avançar sobre o espaço da liberdade constitucional de imprensa e, por decorrência, do jornalista. Que não pode é propagar mentiras, calúnias e difamações. Moro e Dallagnol não reconhecem o material vazado, que não serve de prova na Justiça por ter sido roubado.