O Globo, n. 31612, 24/02/2020. Economia, p. 13

Efeitos coronavírus

Vivian Oswald


A sempre vibrante capital chinesa está irreconhecível. As imagens de grandes avenidas sem trânsito, lojas vazias e poucos pedestres na rua se repetem nas outras metrópoles do país e ilustram o desafio sem precedentes que a China terá pela frente para retomar sua economia e, ao mesmo tempo, conter a epidemia de coronavírus.

Num país em que as relações trabalhistas são frágeis, os cidadãos não têm acessoa tratamento de saúde gratuito e a mão de obra das fábricas é, em sua imensa maioria, formada por migrantes de outras regiões, voltar à normalidade será uma corrida de obstáculos.

Menos de um terço dos 291 milhões de migrantes conseguiu voltar para casa depois do longo feriado do Ano Novo chinês. Estradas foram fechadas e transportes, suspensos. Essaéaúnicaé pocado ano em que os registrados nas áreas rurais do paí seque trabalham nas cidades voltam para casa.

São as férias longas dosch in eses.Éa maior migração do planeta: quatro bilhões de viagens. Neste período, a economia diminui o ritmo. Mas, terminado o feriadão, costuma engatar uma quarta e acelerar, o que não aconteceu até agora.

E a indústria depende da mão de obra de migrantes.

No último dia 16, segundo o vice-ministro de Transportes, Liu Xiaoming, o tráfego de passageiros nas estradas, ferrovias ou aeroportos correspondia a 20% do registrado no mesmo dia de 2019. Espera-se que 120 milhões de pessoas voltem ao trabalho até o fim deste mês (o que elevaria o contingente de trabalhadores para dois terços da capacidade), e o restante, se a epidemia for contida, apenas em março.

De acordo com a revista chinesa Caixin, a Foxconn, principal fabricante do iPhone na cidade de Zhengzhou, oferece 3.000 yuans (quase R$ 1.900) de bônus aos migrantes da província de Henan, vizinha de Hubei, epicentro da epidemia, se voltarem até o fim do mês.

Risco de falência

Na fábrica de Shenzhen da Foxconn, quem conseguiu retornar recebe salário enquanto cumpre quarentena. Mas, segundo a agência de notícias Bloomberg, a remuneração é de apenas um terço do que os operários receberiam se estivessem trabalhando — na China, é comum que os trabalhadores cumpram jornadas longas, com o pagamento de muitas horas extras e bônus.

Em muitos casos, a empresa optou por pagar férias para os funcionários:

— Meu patrão está me pagando pelas férias. Nem tenho como voltar a trabalhar. Não há transporte. Só saio para comprar comida — disse A. Zhang, que vive em Hebei, a uma hora e meia de onde trabalha.

O governo determinou que as empresas remunerem as folgas aos trabalhadores e que os bancos estatais emprestem para as companhias que não têmcomofazê-lo,comoforma de evitar que uma perda de renda repentina afete ainda mais a economia.

O problema, segundo Carine Milcent, professora do Centro Nacional Francês para Pesquisa (CNRS), autora de dezenas de livros sobre o sistema de saúde chinês, é que isso só funciona para as grandes. As pequenas não têm como contrair crédito e podem ir à falência. E elas são muitas. Pequenas e médias empresas contribuem com 60% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, e, como em vários lugares do mundo, não costumam ter acesso fácil a financiamento.

Em Xangai, a fabricante de peças para carros elétricos NIO atrasou o pagamento dos funcionários em uma semana e os pressionou para que aceitassem receber ações da empresa em vez de bônus em dinheiro, relatou a Bloomberg. A situação pode piorar, já que, pela legislação chinesa, as empresas podem adiar salários ou reduzi-los ao piso se tiverem queda no faturamento, desde que cumpram antes um ciclo mensal de pagamento, o que ocorre neste mês.

Se nas fábricas o trabalho é difícil, no comércio e nos serviços a queda no consumo foi brutal. Por todo o país, centenas de milhões de pessoas estão em quarentena voluntária ou forçada. Restaurantes, cafés e lojas estão fechados. Até as compras pela internet perderam clientes. Há menos motoqueiros para fazer as entregas. E os motoboys que transportam comida, quando chamados, carregam, além do pedido, um certificado de saúde de todos aqueles que manipularam o alimento.

Sem trabalhar, muitos chineses que atuam nesses setores estão sem receber salários.

E aC hina não tem um sistema de saúde gratuito, como o SUS, no Brasil. A contribuição do cidadão depende do tipo de assistência aquetem direito. Há três: urbana, rural e para migrantes. Em todos os casos, ele precisa pagar um percentual do próprio bolso a cada vez que vai ao hospital.

Fatura médica alta

Os valores dependem também da região onde está inscrito. Ele só terá os reembolsos se for atendido na área em que tem o seu hukou (autorização de residência, uma espécie de visto). Ou seja, dezenas de milhões de pessoas que não conseguiram voltar para casa após o feriado do Ano Novo ainda estão sujeitas ao pagamento total de faturas médicas.

E não é só isso: nos casos de coronavírus, têm acessoa tratamento gratuito os pacientes que forem submetidos atestes. Nem todos os hospitais estão preparados par afazê-los, e muitos estão sobrecarregados, segundo Carine Milcent.

— O valor que desembolsam normalmente é sempre muito alto — disse a especialista ao GLOBO. — Isso é uma grande catástrofe humana em nome da proteção da saúde pública. Há pessoas sob condições econômicas e sociais desastrosas.

Analistas evitam fazer previsões para o crescimento da economia chinesa. Mas recordam dados do passado, quando a epidemia de SARS, em 2003, diminuiu o crescimento chinês em mais de 1%.Na época,a economia era bem menor do que é hoje e menos dependente de consumo e serviços. Isso significa que o potencial de danos, agora, é maior.

O governo ainda não publicou a meta oficial. Mas havia uma expectativa de expansão próxima de 6%, um pouco menor que em 2019 (6,1%). Esse seria o percentual necessário para que o presidente Xi Jinping entregasse aos chineses no fim deste ano uma economia duas vezes maior que a de 2010. O anúncio da meta acontece durante o relatório de trabalho apresentado pelo primeiro-ministro Li Keqiang no Congresso do Povo, que estava marcado para o dia 5 de março, mas deve ser adiado.

O porta-voz do governo Geng Shuang afirmou que o impacto econômico da epidemia é temporário. Disse ainda que o governo tem espaço político e margem de manobra suficiente para incentivar a economia.

— As medidas de prevenção e controle da epidemia estão mostrando efeitos positivos. Estamos apoiando ativamente a retomada do trabalho em várias empresas, inclusive em companhias estrangeiras na China — disse a jornalistas.

“É uma catástrofe humana em nome da proteção da saúde pública. Há pessoas sob condições econômicas e sociais desastrosas” — Carine Milcent, professora e autora de livros sobre o sistema de saúde chinês.

Serviços virtuais surgem com a epidemia, como consultas a distância

A epidemia de coronavírus já criou nichos de negócios pela China. Serviços remotos e até entregas por robô começam a ser oferecidos ao consumidor. O hospital privado Raffles tem enviado e-mails para seus pacientes cadastrados oferecendo consultas em casa ou por vídeo.

“Tenho medo de sair de casa por causa da epidemia, mas eu preciso ver um médico. O que fazer? Faça uma teleconsulta com o Raffles Medical agora!”, diz o anúncio eletrônico. A tele consulta custa o equivalente a R$ 925 e a visita, R$ 1.188, valor bem acima do que pode pagar um chinês médio.

Vários aplicativos saíram do ar nos últimos dias pelo excesso de uso dos internautas. Muitos serviços começam a ser prestados a distância, e reuniões, só por videoconferência. Nas últimas semanas, o coronavírus inspirou a criação de aplicativos como a plataforma de monitoramento em tempo real das áreas infectadas pelo vírus da parceria Qihoo 360/ NoSugarTech. A Baidu também desenvolveu uma plataforma de consulta gratuita para o público com sintomas e já teve 92 milhões de visitas desde o dia 6 de fevereiro.

No Ano do Rato, que mal começou, já com o desafio de uma epidemia, os chineses apostam na agilidade, inteligência e resistência simbolizadas pelo animal para recuperar a tradicional vitalidade do país.

Neste mesmo ano, o presidente Xi Jinping pretende anunciar a conquista da meta de erradicação da pobreza no país, condição para a etapa seguinte — que é transformar a China em uma nação moderadamente próspera até 2025.