O Globo, n. 31489, 24/10/2019. Mundo, p. 20

Na campanha do vizinho

Assis Moreira
Janaína Figueiredo
Eliane Oliveira


O presidente Jair Bolsonaro ameaçou ontem isolar a Argentina do Mercosul, dependendo da postura do próximo governo no país vizinho, e se juntar a Paraguai e Uruguai para levar adiante a abertura comercial no bloco. Bolsonaro não deixou claro como isso ocorreria, mas frisou que é preciso estar preparado para agir porque considera que uma vitória de Alberto Fernández, do grupo de Cristina Kirchner, na eleição presidencial de domingo, dia 27, “pode, sim, colocar em risco todo o Mercosul”. O presidente, que já deu várias declarações contra a volta do kirchnerismo ao poder, foi criticado tanto pela equipe de Fernández como no Congresso brasileiro.

Na saída para um banquete oferecido pelo premier Shinzo Abe, Bolsonaro foi perguntado se confirmava que o Brasil poderia sair do Mercosul, caso a Argentina não faça uma abertura ampla. Ele disse que o Brasil quer é que a Argentina, caso a oposição vença, continue com a abertura comercial da mesma forma como vinha fazendo o atual presidente, Mauricio Macri.

— Em caso contrário, podemos nos reunir com Paraguai e Uruguai e tomarmos uma decisão não semelhante àquela [contra o Paraguai] — afirmou o presidente.

‘Simplista e ingênuo’

Em 2012, o Paraguai foi suspenso do bloco após o impeachment do presidente Fernando Lugo, ao mesmo tempo que a Venezuela foi aceita como nova integrante. A destituição de Lugo pelo Legislativo em apenas 48 horas foi considerada uma ruptura da ordem democrática, infringindo cláusula do Mercosul. Os atos foram anunciados justamente pela então presidente argentina Cristina Kircher, na liderança rotativa do bloco.

— Aquela (suspensão do Paraguai) foi com outros propósitos — disse.

— O nosso propósito não é facilitar a esquerda [a] formar uma grande pátria bolivariana como queriam Jair Bolsonaro, presidente do Brasil Arnaldo Bocco, assessor de Alberto Fernández os governantes naquela época. Nossa ideia é, sim, de fato abrir o mercado e fazer comércio com o mundo todo.

Perguntado se seria então o caso de tirar a Argentina do bloco, Bolsonaro respondeu:

—Se,você tem razão,temos que contar sempre com o improvável e se preparar como reagir a possíveis mudanças —disse. —Sabemos que a volta da turma do Foro de São Paulo da Cristina Kirchner pode, sim, colocar em risco todo o Mercosul. E em possivelmente colocando, repito, possivelmente, temos que ter uma alternativa no bolso.

Em Buenos Aires, o mais recente ataque do presidente brasileiro ao candidato argentino foi considerado“simplista e ingênuo” por seus assessores econômicos. Na visão de Arnaldo Bocco, um dos estrategistas do programa de governo de Fernández em matéria de relações exteriores, com esta posição o presidente brasileiro está “dando um tiro no pé”. Ele lembrou que muitas empresas brasileiras estão integradas em cadeias produtivas com parceiras argentinas e “podem ser muito prejudicadas”.

— Nem os Estados Unidos estão com esta posição fundamentalista (do Brasil). Trump não fez declarações públicas nem sobre Macri nem sobre Fernández. O governo americano está na expectativa, já tivemos varias reuniões com diplomatas e funcionários americanos —declarou.

‘Sem foco na ideologia’

Em Brasília, a ameaça de Bolsonaro de isolar a Argentina também foi criticada. Para o presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado,Nelsinho Trad (PSD-MS), questões de ordem ideológica não devem ser misturadas ao comércio.

— A Argentina deveria continuar como sócia do Mercosul. A partir do momento em que se muda ideologicamente esse ou aquele governo, essas coisas devem ficar no campo da disputa política. As relações comerciais precisam ser preservadas —disse o senador.

Para o deputado José Rocha (PL-BA), que ocupa a terceira vice-presidência da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, não seria possível falar em reformulação do Mercosul sem a participação da Argentina. A lógica, segundo ele, é de integração, e não exclusão.

— O foco não deveria ser a ideologia, mas a capacidade de integração econômica do bloco —declarou.

Um primeiro teste ao novo governo da Argentina, se confirmada a vitória de Fernández, será na cúpula do Mercosul em dezembro, quando o governo brasileiro planeja propor uma revisão das regras comerciais do bloco, em especial a tarifa externa comum. A área econômica do governo Bolsonaro tem mencionado o provável surgimento do “Mercosul 2.0”, ou bloco flexibilizado. Ou seja, uma nova prática em que cada sócio pode negociar ou não em conjunto.

O isolamento ao qual Bolsonaro se referiu pode ser feito de várias formas. Por exemplo, o Brasil e, se for o caso, os outros sócios do bloco (Paraguai e Uruguai), excluiriam a Argentina de acordos comerciais negociados com outros parceiros. Os argentinos também poderiam ser duramente punidos com o fim da Tarifa Externa Comum (TEC), usada pela união aduaneira no intercâmbio de bens com terceiros mercados. Isso significaria o fim da proteção de empresas locais dos importados.

Brasil estuda opções

Atualmente, há quatro ou cinco simulações em estudo sobre como será a abertura comercial. Uma delas consiste na redução, pela metade, das alíquotas de importação usadas no comércio com países fora do Mercosul. De forma geral, a ideia é acabar com a proteção de setores tradicionalmente fechados, como bens de capital, automóveis e outros produtos finais.

A proposta final a ser apresentada pelo Brasil na próxima reunião de presidentes do Mercosul em dezembro ainda será analisada pela Câmara de Comércio Exterior. Paraguai e Uruguai já estariam alinhados com o governo brasileiro — é preciso maioria entre os sócios no bloco —, mas a Argentina é uma incógnita.

— Não cometeria o erro de pensar que pelo fato de (o Brasil) ser um país grande pode impor normas aos demais países. A relação que a Argentina tem com o Paraguai em matéria de fluxo de pessoas e de comercio é historicamente intensa, com o Uruguai também. Não é tão fácil convencer os países pequenos, por menores que sejam —disse Bocco.

Sem o apoio argentino, o mais provável é que a TEC acabe e o bloco deixe de ser uma união aduaneira, passando ao status de área de livre comércio. Outra possibilidade é manter a TEC apenas para determinados setores, deixando os demais totalmente abertos às importações. (Colaborou Leandro Prazeres/*Do Valor)