Correio Braziliense, n. 21399, 18/10/2021. Economia, p. 7

As cicatrizes da pandemia no mercado de trabalho

Rosana Hessel


Apesar do avanço da vacinação contra a covid-19 no país, com 101,3 milhões de brasileiros totalmente imunizados — conforme dados do Ministério da Saúde —, a atividade econômica patina em meio às incertezas conjunturais e a pandemia vai deixando suas cicatrizes, que devem ser profundas. Além das perdas de pouco mais de 600 mil vidas e das inevitáveis sequelas nos recuperados, o mercado de trabalho também sofre um baque forte com a covid-19 e a taxa de desemprego deve demorar para ficar abaixo de dois dígitos, alertam os especialistas.

Analistas avaliam que, mesmo após o recuo recente para 13,7% na média do trimestre móvel encerrado em julho, quando o país atingiu 14,1 milhões de desocupados, a tendência é de que a taxa de desemprego deva subir e não ficará abaixo de 10% nesta década. Eles reforçam que a pandemia agravou um quadro que já era ruim e, portanto, os futuros candidatos à presidência em 2022 precisarão olhar para essa questão com cuidado e elaborar um bom plano de governo, caso contrário, o país não mudará essa realidade.

O emprego só cresce com a atividade econômica aquecida. Mas as recentes estimativas do mercado mostram que o Produto Interno Bruto (PIB) não são nada animadoras, porque estão em queda e mostram que, devido às mazelas da volta da inflação e às incertezas em relação à política, o PIB não tem fôlego para crescer de forma robusta, ou seja, acima do seu potencial, que encolheu e hoje está abaixo de 2%. As novas estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o PIB brasileiro, por exemplo, prevendo expansão do PIB de 1,5% em 2022 em vez de 1,9%, são criticadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele disse que o FMI "vai continuar errando as projeções".

O cenário previsto por especialistas, no entanto, são piores do que o estimado pelo organismo multilateral, pois já há estimativas para o PIB abaixo de 0,5% e muitos não descartam um cenário de estagflação — o pior dos mundos na teoria econômica, porque não há crescimento e o custo de vida continua elevado, corroendo a renda da população. O Fundo prevê o desemprego no país abaixo de 10% em 2026, cenário improvável pelos analistas.

Um exercício matemático feito por economistas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) e que o Correio teve acesso revela que, se o PIB do país crescer 3,5% entre 2023 e 2026, o desemprego ficará em 10,1% no fim do período, em uma projeção sem ajuste sazonal. Na série ajustada sazonalmente, a taxa passaria para 9,8%, considerando essa mesma expansão. Mas, se o PIB avançar 1,5% nos próximos cinco anos, o desemprego chegaria a 11,6% em 2026.

"A taxa de desemprego já vinha subindo desde 2014, com a primeira recessão da última década e estava em dois dígitos antes da covid-19 e piorou com a pandemia. Apesar de o país já ter voltado a criar emprego, o ritmo não é suficiente para fazer a taxa de desocupação voltar a um dígito tão cedo. Isso já era difícil antes, e, agora, será bastante desafiador", afirma o economista e pesquisador do Ibre Fernando de Holanda Barbosa Filho, um dos responsáveis pelo levantamento. Para ele, a queda na taxa de desemprego será lenta e gradual, porque um crescimento de 3,5% no país, nos próximos anos, é pouco provável na atual conjuntura.

Vale lembrar que 2021 é um ponto fora da curva na trajetória do PIB brasileiro. As previsões de avanço do PIB, em torno de 5%, após o tombo de 4,1%, em 2020, precisam de um desconto do carregamento estatístico do ano anterior — que varia de 3,6% a 4,9% —, dependendo do cálculo utilizado. Isso só confirma a tendência de baixo crescimento do país, o que faz analistas não apostarem em uma taxa de desemprego de um dígito tão cedo.

"O desemprego não deve ficar abaixo de 10% nesta década. A não ser que tenha um milagre, o PIB não conseguirá crescer 3,5% nos próximos anos e isso significa que o desemprego vai continuar muito alto e a massa salarial não retoma o valor real de 2014", frisa o economista Simão Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP). Ele lembra que a desocupação deu um salto entre 2015 e 2016 e a média atual dos últimos sete anos é ascendente e, sem um crescimento robusto da atividade, o desemprego não tem como diminuir.

Alessandra Ribeiro, sócia da Tendência Consultoria, reforça o raciocínio de Silber. "Por mais que a economia esteja se recuperando, a taxa de desemprego ainda está elevada e, provavelmente, o país deverá recuperar a taxa de ocupação no nível pré-pandemia em maio do próximo ano. Mas o desemprego vai persistir em dois dígitos em um horizonte mais longo", afirma. Ela lembra que a informalidade no país — de 40,8% da população ocupada, conforme os dados do Instituto Brasileiro de Economia (IBGE) — é elevada e a retomada do setor de serviços ajuda a melhorar as perspectivas para o mercado de trabalho, apesar de grande parte das vagas nesse segmento serem informais. "As pessoas devem começar a voltar a procurar trabalho, mas o volume de vagas geradas não deverá ser suficiente para absorver o contingente que começa a procurar trabalho de novo", afirma.

Na avaliação do professor da USP, o país caminha para mais uma década perdida do ponto de vista do poder de compra do assalariado. "Em poucas palavras, uma das cicatrizes da pandemia é a piora na distribuição da renda, porque quem vai pagar o pato será o mais pobre. Primeiro, porque perdeu renda com o desemprego e, segundo, porque a inflação triplicou. Isso significa que temos hoje 20 milhões de pessoas com nível de acesso a calorias típico de campos de concentração nazistas", lamenta Silber.

O economista José Luis Oreiro, professor da Universidade de Brasília (UnB), é um dos analistas que não descartam o cenário de estagflação para a economia em 2022. Ele ressalta que, sem investimento público, o PIB continuará fraco. "O crescimento de 1,5% previsto pelo FMI seria o teto. Mas, com essa política de destruição do investimento público e com a incerteza gerada pelo governo, não vejo como recuperar, no curto prazo, o desemprego", pontua.

Para Oreiro, com a inflação atual, também acima de dois dígitos — corroendo o poder de compra do brasileiro e o salário real — outro motor do PIB fica comprometido: o consumo. "Não tem como o consumo puxar o crescimento a curto prazo. O país tem uma crise energética contratada e precisa investir pesado em infraestrutura, mobilidade urbana e em uma economia descarbonizada, como os países desenvolvidos estão fazendo", afirma

Risco de histerese

O professor da UnB alerta para o risco de a crise da covid-19 provocar uma histerese no mercado de trabalho, como na física, criando a tendência de um sistema que não consegue mudar a forma adquirida. Oreiro explica que os danos da pandemia nesse segmento podem ser definitivos sem uma boa política industrial, porque, como uma barra de ferro que, aquecida, entorta e não volta mais à forma normal, o mercado de trabalho pode seguir o mesmo rumo. "O risco da pandemia é o desemprego de longa duração tornar permanente e, com isso, a taxa de desocupação não volta mais ao patamar inicial. E há vários mecanismos que explicam essa histerese. O primeiro é o sucateamento do capital, porque, quando a economia entra em recessão, as empresas deixam de investir na modernização do estoque e o nível de emprego diminui por conta do sucateamento. O segundo fator é a desqualificação, quando os trabalhadores ficam muito tempo sem emprego e ocorre uma depreciação nas habilidades", frisa.

No entender do economista Ecio Costa, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o cenário não é tão desolador para falar em estagflação, mas ele reconhece que o desemprego no país permanecerá elevado por um período prolongado. Para Costa, sem mudanças estruturais na economia, como a reforma tributária e a administrativa, não há como o desemprego voltar para menos de um dígito no país. "Houve poucos avanços em plena pandemia e a reforma tributária que poderia ajudar o emprego industrial não vai avançar e o país continuará crescendo no mesmo ritmo pré-pandemia, de 1%", lamenta o acadêmico. Segundo ele, a reforma do Imposto de Renda, "não vai ajudar nesse sentido de melhorar o crescimento do país e do PIB per capita, passada a pandemia''. "Para reduzir o desemprego, é preciso avançar com medidas que melhorem as regras tributárias e a burocracia, ainda muito engessada", complementa.

Projeções

De acordo com os dados do FGV Ibre, a taxa de desocupação do Brasil era bastante baixa na década de 1980 e no início dos anos 1990, com uma média de 5% entre 1981 e 1994. O indicador passou de média de 9,3% entre 1995 e 2014. E, devido à crise econômica no país e à recessão de 2015 e 2016, a taxa de desemprego média entre 2014 e 2019 subiu para 11,4%. Com isso, entre 1995 a 2019, a taxa média foi de 9,7%. Para este ano, o instituto prevê que a taxa de desocupação encerrará dezembro em 14,1%, passando para 13% no fim de 2022, considerando as taxas de crescimento do PIB de 4,9% e de 1,5%, respectivamente. Já a previsão para a massa salarial ampliada é de queda de 4,7%, em 2021, e, no ano que vem, avanço de 3,4%. A Tendências Consultoria, apesar de ter previsões mais otimistas do que o Ibre para o PIB neste ano e no próximo, de 5% e de 1,8%, respectivamente, tem estimativas parecidas para o desemprego, de 14% e 13,5%, respectivamente. Em relação à renda do trabalho, prevê queda de 3,5%, neste ano, e alta de 1%, em 2022.

Problema estrutural

Um dos flagelos da pandemia é o aumento do desemprego, que não deve recuar para um dígito tão cedo e continuará sendo o principal desafio dos próximos governos

Evolução do desemprego
Período Taxa — Em %
4tri12 6,9
4tri13 6,2
4tri14 6,5
4tri15 8,9
4tri16 12,0
4tri17 11,8
4tri18 11,6
4tri19 11,0
4tri20 13,9
1tri21 14,7
2tri21 14,1
3tri21* 14,4
4tri21* 13,0
1tri22* 13,4
2tri22* 13,0
3tri22* 13,4
4tri22* 12,2
4tri23* 11,6
4tri24* 10,9
4tri25* 10,1
4tri26* 10,1

*Taxa projetada pelo FGV Ibre com base nos dados do IBGE, sem ajuste sazonal, considerando altas do PIB de 4,9%, em 2021, de 1,5%, em 2022, e de 3,5% de 2023 a 2026.

Renda instável

Rendimento do trabalhador brasileiro vem sendo corroído pelas crises e pela inflação, conforme projeção do FGV Ibre

Evolução da massa salarial
Período Em R$ bilhões
4tri17 1.025,7
4tri19 1.107,6
1tri20 936,9
2tri20 1.059,3
3tri20 1.055,4
4tri20 1.041,2
1tri21 902,2
2tri21 992,7
3tri21 976,9
4tri21 1.027,5
1tri22 944,9
2tri22 978,8
3tri22 999,2
4tri22 1.108,1

 

Motor fraco

PIB brasileiro encolheu mais do que a média global em 2020 e, pelas projeções do FMI, continuará crescendo menos do que o resto do mundo

Evolução do PIB do Brasil
Ano Variação - Em %
2010 7,5 4,2
2011 3,9 3,1
2012 1,9 2,5
2013 3,0 2,6
2014 0,5 2,8
2015 -3.5 2,8
2016 -3.3 2,6
2017 1,3 3,2
2018 1,8 3,1
2019 1,4 -3,5
2020 -4,1 5,7
2021* 5,2 4,7
2022* 1,5 3,1
2023* 2.0 2,8
2024* 2,1 2,7
2025* 2,1 2,7
2026* 2,1 2,7
*previsão do FMI

Fontes: FGV Ibre e FMI