O Globo, n. 31613, 25/02/2020. Sociedade, p. 27

A epidemia na Itália

Heloisa Traiano
Rafael Garcia
Renata Mariz


A disseminação do coronavírus na Itália — inicialmente na Lombardia, região no extremo Norte do país, depois nas vizinhas Vêneto e EmíliaRomanha — fez com que uma preocupação moderada virasse, em dois dias, um pânico entre os moradores destas áreas.

Até ontem, a Itália havia tido 229 casos confirmados (172 deles na Lombardia) e sete mortes, fazendo do país o terceiro mais atingido, depois de China e Coreia do Sul.

O salto no número de casos no último fim de semana levou o governo italiano a limitar o acessoa 11 cidades do Norte do país, afetando mais de 50 mil pessoas. No domingo, o premier italiano, Giuseppe Conte, disse que o país deverá seguir apolítica de precaução máxima.

— Confesso que fiquei surpreso coma explosão no número de casos. Mantivemos sob controle até pouco tempo atrás — disse à imprensa italiana. — Agora, estamos tentando isolar e delimitar os focos. Devemos fazer de tudo para conter o contágio.

Em Bolonha, que está a 160 quilômetros de distância do lo calmais próximo com registro de contaminação, autoridades locais decidiram na tarde de domingo fechar tudo por uma semana: escolas, museus, eventos culturais e a famosa universidade local.

Os bolonheses receberam ainda ordem de não comparecerem a nenhum tipo de aglomeração, seja em local público ou privado. Dentro de poucas horas, diversos mercados da cidade tinham longas filas de carros e prateleiras vazias.

Temerosas, as famílias estocaram alimentos para se manterem reclusas por vários dias. Cenário oposto ao do dia anterior, entretanto, que havia transcorrido em perfeita normalidade.

— Desde domingo, não saí mais de casa. Recebi fotos de algumas prateleiras vazias em supermercados. Agora vou ficar em casa nos próximos dias, sem contato com outras pessoas. Totalmente recluso por uma semana — diz o brasileiro Gabriel Ribeiro, de 23 anos, que mora em Bolonha.

No coração de Milão, a capital da Lombardia, ruas, lojas e restaurantes estavam praticamente desertos, pois muitas empresas pediram que funcionários trabalhassem em casa.

A Piazza Duomo, geralmente cheia de turistas, estava estranhamente quieta, com poucos pedestres se aventurando do lado de fora.

Não havia sinais dos vendedores de bugigangas e lembranças ou daqueles que vendiam milho para que os turistas pudessem tirar fotos com os pombos.

O Bar Duomo estava vazio ao meio-dia, quando empresários e turistas costumam ir aos cafés e restaurantes ao redor da Catedral de Milão.

— Há pânico e uma atmosfera surreal — disse Melinda Bar et,umaf ilipina que trabalha em Milão como auxiliar doméstica. — Nesta manhã, no metrô, havia menos pessoas do que o normal, a maioria delas com uma máscara, e o restante com um lenço protegendo o rosto. Ainda vou a todas as famílias para as quais trabalho, mas estou tomando muitas precauções. Estou assustada.

É verdade que existem bolsões de calma em torno de Milão. No bairro residencial ao norte de Affori, os bares estavam abertos e cheios de gente, alguns sentados do lado de fora. Em Bresso, um subúrbio do Norte de Milão com 26 mil habitantes, crianças lotaram os parques locais depois que as escolas foram fechadas.

Viagens sob tensão

Desde o fim de janeiro, a tensão vem crescendo em relação ao vírus na região. Há 20 dias, o prefeito de Bolonha, Virginio Merola, visitou um restaurante chinês para uma refeição em frente à imprensa, a fim de convencer a população de que não havia risco de transmissão.

Agora, o registro de nove casos em Piacenza, na fronteira com a Lombardia, e o anúncio das medidas preventivas, fizeram com que o medo crescesse exponencialmente, levando, por exemplo, ao cancelamento do carnaval de Veneza, que reúne milhares de foliões.

Nas estações enas composições ferroviárias do Norte italiano, o número de pessoas com máscaras chama atenção. Muitos dos que não as têm cobrem boca e nariz com o cachecol em ambientes fechados. Numa viagem de duas horas, ouve-se diversas vezes um aviso sonoro de que é necessária máxima atenção contra o novo vírus.

Em seu informe com instruções sobre a epidemia, o governo italiano ressalta que a doença raramente éle tal, sendo idosos e pacientes com problemas preexistentes os mais vulneráveis. Todos os mortos em decorrência do vírus na Itália tinham entre 68 e 88 anos.

Países vizinhos reagem

Enquanto isso, algumas das preocupações italianas se espalharam para avizinha França, onde um ônibus operado pela Flixbus vindo do Norte da Itália foi bloqueadona estação Perrache, de Lyon.

A Áustria fechou temporariamente o tráfego nas fronteiras coma Itália, que propôs uma reunião de ministros da Saúde de países vizinhos para determinar “linhas de ação comuns ”.

A maioria dos casos da Itália foi inicialmente ligada a um homem de 38 anos que procurou tratamento em um hospital na região da Lombardia em 18 de fevereiro. Enquanto estava lá, ele infectou dezenas de pacientes e equipe médica, que depois espalharam o vírus.

Doença se multiplica, mas OMS diz que não há pandemia

A epidemia de coronavírus pela primeira vez começou a dar sinais mais concretos de que está se propagando de maneira independente fora da China. Quatro outros países já têm mais de 40 casos notificados: Coreia do Sul, Japão, Itália, Irã e Cingapura.

Segundo o diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde), porém, a aceleração da taxa de transmissão do vírus ainda não significa que ele seja pandêmico, apesar de ter potencial para sê-lo.

— O aumento súbito do número de casos na Itália, no Irã e na Coreia do Sul é profundamente preocupante, e há muita especulação sobre se esses aumentos significam que a epidemias e tornou uma pandemia.Mas, no momento, não estamos testemunhando uma disseminação global desenfreada deste vírus, e não estamos testemunhando doença severa e morte em grande escala — afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, em entrevista coletiva na manhã de ontem.

A aceleração internacional da epidemia ocorreu no mesmo dia em que, dentro da China, a disseminação da Covid-19 (acrônimo que designa a doença) deu sinais de estar mais lenta.

A Itália registrou 229 casos e sete mortes. O Irã, que identificou 61 pacientes, teve 12 mortes. A Coreia do Sul, com 833 casos, teve sete mortos. Nos três países, há casos de infecção com origem não rastreada. No final de semana, o número de casos fora da China chegou a 2.078, em 28 países.

Apenas anteontem, a Coreia do Sul registrou 231 novos casos. Vários deles tiveram origem em um culto religioso cristão na cidade de Daegu, que teve a presença de uma paciente infectada.

No Irã, a maioria dos casos encontrados se originaram em Qom, cidade muçulmana sagrada a 120 km de Teerã. O Kuwait, o Bahrain e o Líbano registraram entre sexta-feira e domingo seus primeiros casos: três pessoas que haviam visitado o Irã.

Apesar da apreensão internacional, a China emitiu ontem relatório contabilizando 77.658 casos notificados, com 2.663 mortes. Foram poucos novos casos, com sinais de desaceleração da epidemia dentro do país. Das 31 províncias chinesas, 24 não relataram nenhum caso novo no domingo, incluindo Pequim e Xangai. Em Hubei, epicentro da doença, o registro de casos novos em um único dia vem caindo. O governo chinês anunciou que vai relaxar algumas medidas de quarentena.

Brasil investiga 4 casos

Ontem, o governo brasileiro dobrou, de oito para 16, o número de países considerados para definição de casos suspeitos de coronavírus. Itália, França e Alemanha passaram a constar da lista. Isso significa que pessoas com febre e ao menos mais um sintoma de doença respiratória, que tenham passado por esses países nos últimos 14 dias, devem ter seus casos notificados às autoridades.

Até sexta-feira, somente China estava na lista de países para o conceito de caso suspeito no Brasil. Naquele dia, foram incluídos Coreia do Sul, Coreia do Norte, Camboja, Japão, Vietnã, Cingapura e Tailândia. Agora, entraram Austrália, Filipinas, Malásia, Itália, Alemanha, França, Irã e Emirados Árabes.

No Brasil, há quatro casos suspeitos em acompanhamento: três em São Paulo e um no Rio de Janeiro. Duas pessoas viajaram para o Japão, um para a China e um para a Tailândia.