O Globo, n. 31489, 24/10/2019. Opinião, p. 2

Quem tem medo da China?

Marcelo Ninio


Em meio à habitual saraivada de petardos verbais do presidente Jair Bolsonaro, uma frase sobre a China em agosto passou quase despercebida. No auge da crise em torno das queimadas na Amazônia, Bolsonaro dizia mais uma vez que a preocupação internacional com o meio ambiente não passa de disfarce para potências estrangeiras predatórias de olho nas riquezas do Brasil. Como exemplo dos perigos à soberania, mirou a China: “Olha o que o Uruguai acabou de fazer. Praticamente terceirizou o seu mar à China. O chinês agora é o dono do mar para fins de pesca no Uruguai.”

Foi uma das raras menções críticas de Bolsonaro à China desde a posse, num retorno ao alarmismo contra o país asiático de sua campanha. No caso em questão, uma empresa chinesa se preparava para construir um megaterminal de pesca perto de Montevidéu. Exageros e imprecisões à parte, o alerta de Bolsonaro ecoa preocupações de muitos países com a musculatura econômica da China e de suas empresas. Além do possível impacto ambiental do projeto — que acabou engavetado pelo governo após despertar oposição popular —, um dos temores era de fato o risco à soberania, já que o porto operaria como zona franca, o que supostamente limitaria o controle uruguaio.

Nada que se aproximasse de tornar a China “dona” do mar uruguaio. Mas ainda assim um exemplo, entre muitos pelo mundo, da ansiedade causada pela crescente influência e envergadura econômica da China. As suspeitas são alimentadas pela opacidade de muitas iniciativas internacionais de Pequim, escoradas em seu sistema de partido único e num capitalismo de Estado em que as linhas entre mercado e o governo nem sempre são claras.

Bolsonaro fará nesta semana sua primeira visita à China como presidente. É mais uma oportunidade para repensar o que o Brasil quer de seu maior parceiro comercial, em breve a maior economia do planeta. Bravatas simplificadoras como a de que a China está “comprando o Brasil” podem ajudar a ganhar eleições. No mundo real o que vale é ter uma estratégia que permita ao Brasil tirar o melhor proveito de um mundo no qual a China ocupará um papel cada vez mais dominante. Há riscos, sem dúvida.

Uma das inquietações tem sido a “diplomacia da armadilha da dívida”, em que países credores usam empréstimos impagáveis para obter objetivos estratégicos em relações bilaterais. Pequim nega que essa seja sua estratégia, o que pode ser verdade. Na prática, porém, o alto volume de empréstimos chineses, aliado à fragilidade institucional dos países endividados, resulta numa armadilha difícil de escapar.

Há vários exemplos, mas para ficarmos na América do Sul, os violentos protestos ocorridos recentemente no Equador têm ligação com os empréstimos concedidos pela China no governo de Rafael Correa (2007-2017). Correa expulsou o Banco Mundial e se aproximou de Pequim, do qual obteve créditos bilionários para projetos de infraestrutura, em troca de petróleo a preços camaradas. Quando o petróleo despencou, a economia entrou em recessão. Lenín Moreno, que assumiu a presidência em 2017, herdou um déficit de 8% do PIB — em parte devido à dívida com a China — e poucos recursos de financiamento. No começo do ano o país fechou um pacote de ajuda de US$ 10 bilhões com o FMI que incluiu medidas de austeridade como o corte dos subsídios aos combustíveis, que deflagrou os protestos. Encurralado, Moreno teve que voltar atrás.

Pode-se culpar a China por práticas predatórias em sua diplomacia econômica. Mais produtivo é focar no que é possível fazer para conviver com sua ascensão. Na viagem de Bolsonaro à China, mais uma vez o foco do Brasil deve ser a ampliação de nossas exportações agrícolas, o que não deixa de ter importância. Mas reduzir a relação bilateral à venda de commodities significa resignar-se à ausência de uma estratégia de longo prazo para a China que caracterizou todos os últimos governos brasileiros, sem exceção. Com visão e conhecimento, o fantasma do neocolonialismo pode virar interdependência.