O Globo, n. 31488, 23/10/2019. Mundo, p. 31

Bolívia à espera de um resultado

Marina Gonçalves


Após denúncias de fraude eleitoral causadas por confusões na apuração e pela demora do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) da Bolívia em anunciar os resultados oficiais da eleição presidencial de domingo, o governo anunciou ontem que propôs à Organização dos Estados Americanos (OEA) auditar as atas de votação. A entidade aceitou.

— Entregamos uma carta ao secretário-geral da OEA, Luis Almagro, em Washington, solicitando que seja feita uma auditoria, uma verificação, uma a uma das atas de votação — disse o chanceler Diego Pary em entrevista coletiva em La Paz, afirmando ter convidado ainda Estados Unidos, Brasil e Argentina para participar da auditoria.

— Como governo, nos interessa que todo o processo tenha a transparência necessária. Aceitaremos os resultados da eleição, qualquer que seja.

Segundo o chanceler, todas as dúvidas e consultas realizadas pelos observadores internacionais foram esclarecidas em uma reunião com o presidente Evo Morales, mais cedo.

Desconfiança no TSE

Na segunda-feira, quando a apuração pela chamada contagem rápida chegou a 95,63% das urnas, Morales apareceu com 46,85% dos votos contra 36,74% de Carlos Mesa, da Comunidade Cidadã—uma diferença de 10,1 pontos percentuais, que seria suficiente para uma vitória no primeiro turno, o que desencadeou protestos em diversas cidades bolivianas na madrugada de ontem.

Esses números haviam deixado de ser atualizados por quase 24 horas, depois que o sistema de contagem rápida parou de funcionar, na noite de domingo, com 85% dos votos apurados. Havia então uma diferença de oito pontos percentuais entre os candidatos,o que levaria a disputa para o segundo turno. Na Bolívia, para evitar um segundo turno é necessário que o candidato vitorioso tenha 50% mais um dos votos ou mais de 40% e uma diferença de dez pontos sobre o segundo colocado.

Diante desses resultados, a OEA, observadora oficial da votação, expressou preocupação coma mudança“difícil de explicar” na tendência geral, e convocou uma sessão extraordinária do seu Conselho Permanente hoje, em Washington, a pedido de Brasil, Canadá, Colômbia, EUA e Venezuela (representada pelo líder opositor Juan Guaidó) para tratar da “situação na Bolívia”.

De toda forma, o resultado que vale oficialmente é o da apuração manual, mais lenta, que mostra um quadro ainda indefinido. Nesta contagem, com mais de 95% dos votos apurados, Morales se aproximava da vitória com 46,33% contra 37,18% de Mesa — registrando 9,15 pontos percentuais de diferença. O presidente tem forte apoio nas zonas rurais, que geralmente são as últimas a serem contabilizadas, algo que se esperava aumentar a diferença sobre o adversário.

Morales concorre ao quarto mandato consecutivo e já se sabia, pelas pesquisas pré-eleitorais, que pela primeira vez havia o risco de que tivesse que disputar um segundo turno. O presidente teve 54% dos votos no primeiro turno em sua primeira eleição, em 2005, e mais de 60% nas duas reeleições subsequentes.

O clima de incerteza provocado pela interrupção da contagem rápida e por sua retomada 24 horas depois mostrando outra tendência levou aos protestos convocados por Mesa e seus apoiadores, e fez com que o vice-presidente do órgão eleitoral renunciasse ontem. Carlos Cordero, cientista político da Universidade Mayor de San Andrés, explicou ao GLOBO, no entanto, que o TSE tem até 15 dias para divulgar os resultados oficiais.

— Há muito ruído causado pelo alto grau de desconfiança em relação ao tribunal eleitoral, que vem se mostrando condescendente e tolerante com decisões que favorecem o Executivo — afirmou Cordero, acrescentando que todos os membros do órgão foram eleitos pela Assembleia Nacional, de maioria governista, como prevê a Constituição.

— Há muito mal-estar entre os cidadãos e temor pelo que pode acontecer.

Disputa nas ruas

O referendo a que Cordero sere fereéoconv ocado por Morales em 2016, quando os bolivianos votaram, por uma pequena margem, a favor de manter o número de mandatos estabelecido pela Constituição —impedindo assim que Morales tentasse uma nova reeleição. Apesar da derrota, o presidente recorreu à Justiça, alegando que era seu “direito humano” concorrer. No ano passado, o TSE foi criticado por aceitar o registro da candidatura de Morales.

Ontem, o opositor Mesa, que presidiu o país de 2003 a 2005, denunciou à OEA que o organismo eleitoral “interrompeu arbitrariamente” a contagem e repetiu que acredita no segundo turno. Os EUA, por sua vez, denunciaram uma tentativa de“subvertera democracia na Bolívia ”, e a União Europeia pediu “respeito à vontade do povo boliviano”. Espanha, Argentina, Brasil e Colômbia também expressaram preocupação coma contagem de votos.

Depois que Mesa afirmou que não reconheceria uma vitória de Morales em primeiro turno, seus apoiadores incendiaram as sedes da Justiça eleitoral em três departamentos (estados), e atacaram a sede do partido do presidente, o Movimento ao Socialismo (MAS) na cidade de Oruro.

O Comitê Cívico do departamento de Santa Cruz convocou uma paralisação indefinida para hoje. Já o líder do Conalcan, coletivo de sindicatos de trabalhadores e camponeses, o maior do país, se mobilizou em favor de Morales.

Entenda o sistema de dupla contagem dos votos na Bolívia

Como funciona a contagem rápida?

Desde 2016, o TSE boliviano usa a Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares (TREP), que permite que, mesmo em locais mais remotos, como as zonas rurais, os votos sejam computados com agilidade, já que as cédulas são fotografadas e escaneadas, e os dados digitalizados e enviados ao sistema, via aplicativo, para o órgão eleitoral — a chamada contagem rápida. A empresa responsável pelo sistema não é boliviana.

Esperava-se que a contagem rápida indicasse um resultado próximo do oficial na noite de domingo. A contagem, porém, parou quando estavam apuradas 83,76% das atas, e Morales vencia Mesa por oito pontos percentuais, o que levaria a disputa para o segundo turno. No dia seguinte, quando ela foi atualizada, com pouco mais de 95% das atas apuradas, Morales liderava por mais de 10 pontos percentuais, o que lhe daria a vitória no 1º turno.

Resultados oficiais

O resultado que vale oficialmente é o da contagem manual dos votos, mais lenta. Às 21h de ontem, com 95,39% dos votos computados, a diferença entre os dois candidatos era de 9,15 pontos percentuais: Morales tinha 46,33%, e Mesa 37,18%. Durante o dia, a vantagem de Morales sobre o adversário aumentou. À medida que entravam os votos das áreas rurais, o resultado da contagem manual se aproximava do da contagem rápida.

Denúncias de fraude

Na segunda, quando a contagem rápida indicou vitória de Morales no primeiro turno, a OEA, observadora oficial da votação, se disse preocupada com a mudança “difícil de explicar” na tendência da apuração. EUA e Brasil também se pronunciaram. Mesa denunciou a suposta intenção de Morales de “manipular” o resultado. La Paz respondeu convidando a OEA auditar “uma a uma as atas”, e disse que aceitará qualquer resultado.