O Globo, n.31.584, 27/01/2020. Economia. p.13

Fila de espera de 500 mil
Pedro Capetti
Elisa Martins 


 

Em apenas um ano, o programa Bolsa Família voltou a enfrentar um antigo problema. Desde junho, a fila de pessoas aguardando pelo benefício saltou de zero, patamar que se encontrava desde 2018, para 494.229 famílias. A espera é a maior desde 2015, quando mais de 1,2 milhão de famílias aguardavam o auxílio. São famílias cujo perfil de renda é compatível com programa e já estão cadastradas — mas continuam na miséria e sem a ajuda de R$ 89 por pessoa.

Os dados foram obtidos pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação, após quatro meses de demanda com o Ministério da Cidadania, que só liberou a informação após determinação da Controladoria Geral da União (CGU).

Entre janeiro de 2018 e maio de 2019, a média mensal de novos benefícios concedidos era de 261.429. Desde junho, esse número caiu drasticamente, e hoje esse número está em 5.667. Em nota, o Ministério da Cidadania afirma que a redução de benefícios se deu por questões orçamentárias e combate a fraudes, e cita ainda uma reformulação do programa, em curso na Esplanada.

Essa redução fez com que a entrada de famílias, que deveria ocorrer em até 45 dias após a inclusão e análise dos dados inseridos, passasse a até mais de seis meses, segundo técnicos que trabalham nesse setor.

13 MILHÕES DE MISERÁVEIS

A volta da fila no principal programa de erradicação da pobreza do país é fruto do enxugamento dos beneficiários no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, período em que o Bolsa Família chegou a atingir o maior número de assistidos desde 2004, quando foi criado. Em maio, 14,2 milhões de famílias recebiam um rendimento médio de R$ 190. Desde então, apesar de no ano passado o governo ter concedido o 13º salário, o programa vem encolhendo mês a mês, tendo atingido em dezembro o menor patamar de famílias beneficiárias desde 2011: 13,1 milhões.

Em julho do ano passado, a cuidadora de idosos Marlene de Almeida, de 46 anos, deu entrada no programa, devido à demora em encontrar um trabalho fixo. Desde julho de 2018, quando seu patrão morreu, ela busca uma nova colocação, fazendo bicos para complementara renda nacas a em que mora com afilha de 7 ano se o marido, ajudante geral em um bar. Mesmos em receber acarta, ela foina semana passada ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras), no Centro de São Paulo, atrás de informação:

—Se não mandaram carta, não tem jeito. Mas achei que teria direito (ao Bolsa Família). Conheço gente que recebe. Somos de baixa renda. Temos filha, e ela estuda.

Sem recursos, a saída de muito sé contar coma ajuda e solidariedade dos vizinhos, como Yasmin Pereira, de 19 anos, moradora do Complexo da Maré, no Rio. Mãe de uma menina de 10 meses e de um garoto de 3 anos, ela se viu forçada a pedir ajuda em roupas e alimentos, distribuir currículos e ir ao Cras semanalmente em busca de uma resposta a seu pedido, feito em julho.

—Estou morando de favor. Minha vida é ir juntando R$ 10, R$ 20, R$ 30 para conseguir dar comida para as crianças. Não posso deixar eles com fome. Se não fosse o apoio dos vizinhos, não sei o que seria de mim —lamenta.

O ressurgimento da fila ocorre em um momento crítico no combate à pobreza. Em 2018, o número de miseráveis (considerados aqueles que vivem com menos de R$145 por mês) bateu recorde: 13,5 milhões, segundo o IBGE. Somente durante a crise econômica, mais de 4,5 milhões de brasileiros foram empurrados para essa situação, um aumento de 50% em quatro anos.

—Na crise, seis milhões de pessoas passaram a viver com renda de trabalho zero. E o Brasil encurtou a rede de proteção quando ela era mais necessária —afirma Marcelo Neri, diretor do FGV Social.

Ex-usuário de drogas em reabilitação em uma clínica em Japeri, na Região Metropolitana do Rio, Alexander Garcia, de 24 anos, enfrentava a fila no Cras em Bonsucesso, na Zona Norte, em busca do benefício para arcar com parte dos remédios do tratamento, um gasto em torno de R$ 900 por mês, hoje pagos com ajuda de sua mãe.

— O beneficio é pouco, mas é a chance de comprar os meus remédios e conseguir mais uma vitória nesse tratamento —diz Garcia.

PERDA DO PODER DE COMPRA

A dificuldade de entrar no programa não se restringe aos novos beneficiários. Quem saiu não tem conseguido retornar. Desde junho, nenhum ex-beneficiário obteve nova concessão do Bolsa Família. Para efeito de comparação, entre 2015 e 2018, período mais rigoroso da recessão, mais de 2,2 milhões de pessoas retornaram ao programa.

Para quem já recebe, há o problema da queda no poder de compra, corroído pela inflação. Desde 2018, o benefício está em R$ 89, pois, diferentemente de outros programas do do governo, o Bolsa Família não tem reajuste automático, pois não está indexado à inflação.

Hoje, a limitação orçamentária de R$ 30 bilhões — o mesmo valor de 2019 — não permite mudança de cenário a curto prazo, por causa do teto de gastos. Tanto um reajuste quanto um novo 13º, que não está garantido, estão fora dessa previsão. Estuda-se conceder um “bônus” financeiro aos estudantes aprovados com média mínima de 7. Mas hoje não há um sistema nacional que monitore as notas escolares.

‘Teremos que esperar uns três meses, e mais um para chegar o cartão’ ‘Se o Bolsa não vier, vou ter que dar meus filhos para os outros’