Correio Braziliense, n. 21397, 16/10/2021. Política, p. 4

Nas entrelinhas: a história que será contada

Carlos Alexandre de Souza


O Brasil alcançou, esta semana, duas marcas importantes no enfrentamento da covid-19. Primeiramente, o país chegou a 100 milhões de pessoas totalmente vacinadas contra o novo coronavírus. Significa dizer que quase metade da população obteve, do ponto de vista sanitário, as melhores condições possíveis para se proteger do patógeno cuja letalidade alcançou níveis catastróficos no Brasil. Na última quinta-feira, o país bateu outra meta relevante: mais de 150 milhões de brasileiros receberam ao menos a primeira dose ou dose única de imunizante. Ao somar esses dois dados, conclui-se que o Programa Nacional de Imunização já aplicou aproximadamente 250 milhões de doses no braço dos cidadãos. Considerando que a campanha de imunização começou em janeiro, com aplicação da CoronaVac em São Paulo, o Brasil confirmou, mais uma vez, a excelência do sistema de atendimento vacinal. Demonstrou por que o programa de imunização, desenvolvido desde os anos 1970, tornou-se referência mundial em políticas públicas de saúde. O avanço da vacinação é mais uma vitória do Sistema Único de Saúde (SUS), aliado incansável dos brasileiros desde a chegada da covid-19 ao país no início de 2020. Não fosse o trabalho heroico dos profissionais da rede pública de saúde, a doença deixaria marcas muito mais profundas do que a morte de 600 mil pessoas.

O avanço da vacinação demonstra que o combate a uma calamidade nas proporções de uma pandemia não ocorreu de improviso. Como aconteceu em outras ocasiões, a melhor resposta da medicina para um mal contagioso resultou de um esforço extraordinário da comunidade científica. A arma mais eficaz contra o novo coronavírus nasceu do rito clássico da ciência. Primeiro foi preciso analisar o agente causador da moléstia identificada oficialmente na China no fim de 2019. Passou-se, então, ao desenvolvimento do imunizante capaz de fornecer boas respostas contra o patógeno. Depois dos testes em laboratório, seguiu-se a verificação dos efeitos da vacina em seres vivos. Primeiro grupos específicos, depois contingentes maiores. Atualmente, quatro imunizantes estão autorizados para uso em humanos. Não existe, portanto, uma fórmula mágica, remédio milagroso ou lance genial para combater a doença. Foi o trabalho conjunto de pesquisadores espalhados pelo mundo, em um esforço global poucas vezes visto na história, que permitiu o desenvolvimento de uma solução para o momento sombrio que atravessamos. Foi a ciência, muito menos do que a política, que abriu caminho para a humanidade — e o Brasil incluído — chegar a outubro de 2021 com esperança de dias melhores.

As conquistas da ciência na batalha contra a covid — a guerra ainda não terminou — devem ser mais valorizadas quando se leva em consideração os movimentos orquestrados para sabotar o combate à enfermidade. Essas ações envolveram interesses políticos e empresariais que buscavam outros objetivos que não socorrer os milhões de brasileiros aflitos com a ameaça que se abatia sobre o país. Na próxima semana, o Brasil terá a oportunidade de avaliar um documento que apresentará uma perspectiva dessa história iniciada em fevereiro de 2021. O relatório produzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid será o primeiro relato consolidado sobre a maior tragédia sanitária do país. É o texto que permitirá à nação debater onde ocorreram as falhas mais graves, quem são os responsáveis pela trajetória da pandemia, que alcançou no Brasil um número avassalador de mortes, comparável apenas ao que ocorreu nos Estados Unidos.

Naturalmente, não faltarão objeções de que o relatório da CPI é um documento político, produzido com os fins de atingir o governo de Jair Bolsonaro. E que, por ser político, revela um viés parcial, que não reconhece o esforço do governo federal no combate da pandemia. Argumente-se que a CPI, colegiado formado por membros do Legislativo federal, tem o dever constitucional de analisar atos e omissões do Executivo. Se os parlamentares da CPI não podem ser chamados de isentos, convém perguntar: onde está a isenção? Os aliados do governo Bolsonaro expuseram, dentro ou fora do plenário da CPI, as ações de enfrentamento da pandemia. Tiveram a oportunidade de justificar as decisões que tomaram e as dificuldades que sofreram no combate ao vírus. Os listados no relatório da CPI têm todo o direito a discordar das conclusões elaboradas pelos senadores. Mas, em algum momento, deverão explicar a poderes como o Ministério Público ou o Judiciário, se agiram com correção.

Leia mais: https://www.cbdigital.com.br/correiobraziliense/16/10/2021/p4