O Globo, n. 31616, 28/02/2020. País, p. 4

Cabo de guerra

Naira Trindade


No cabo de guerra travado entre Congresso e o Planalto pelo controle de R$ 46 bilhões em emendas ao Orçamento de 2020, parlamentares trabalham para votar, já na próxima semana, os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao texto. O relator do Orçamento, Domingos Neto (PSD-CE), se reunirá no domingo com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), na expectativa de pautar a votação já para a próxima terça-feira — ainda não há sessão do Congresso convocada.

Depois de fracassado um primeiro acordo entre Legislativo e Executivo, há uma nova costura em curso, mas o Planalto trabalha para adiar a votação dos vetos, que serão analisados por deputados e senadores. O governo gostaria que os vetos fossem apreciados pelos parlamentares apenas após manifestações convocadas contra o Congresso — e que foram pivô de uma crise entre o Planalto e o Parlamento, diante de um controverso apoio de Bolsonaro às manifestações, do qual o presidente tenta recuar. No governo, não está descartada a ideia inclusive de se judicializar o tema do Orçamento, caso o Congresso derrube os vetos sem entendimento com o Planalto.

Bolsonaro avisou que não concorda com o pacto anunciado há duas semanas que permitiria ao Congresso indicar a prioridade de execução de todos os R$ 16 bilhões de emendas parexecução lamentares e de R$ 15 bilhões dos R$ 30 bilhões aprovados no Orçamento como “emenda de relator”, cuja ordem de execução será indicada por Domingos Neto (PSD). Em troca, por esse acordo, ficaria afastada a possibilidade de punição ao gestor do Executivo que não cumprisse a execução no prazo de 90 dias. Os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, participaram das negociações.

Com esse pacto descartado, há interesse no Congresso de acelerar a análise dos vetos para poder começar a controlar a das emendas, ainda mais importantes em ano de eleições municipais. À cúpula do Congresso, o relator Domingos Neto tem usado como argumento um vídeo em que Paulo Guedes aparece dizendo querer descentralizar os recursos da União “de Brasília para o Brasil”.

O governo, por seu lado, estuda outras armas. Numa judicialização do tema, o argumento para ir ao STF contra eventuais derrubadas de vetos seria que a Constituição garante ao Poder Executivo a prerrogativa de executar o Orçamento, e a alteração legislativa está sendo feita por meio de lei ordinária.

Relógio a favor

Aliados de Bolsonaro argumentam que o adiamento da votação favorece ao governo, que não tem pressa para que os vetos sejam apreciados. Uma fonte da equipe econômica comparou a situação co made um jogo de basquete em que uma equipe está pressionada e o técnico“pede tempo ”. A avaliação de aliados do presidente é a de que qualquer decisão neste momento será usada contra Bolsonaro. Se aceitar o acordo, teme ser acusado de ceder ao Congresso. Caso recuse, pode ser derrotado e apontado como um presidente que enfrenta o Parlamento.

A tensão aumentou na semana passada após o ministro Augusto Heleno, do GSI, explicitar o incômodo afirmando que o governo não pode ceder às “chantagens” do Congresso. Bolsonaro afirmou em conversas reservadas que o acordo é uma tentativa de “impor um parlamentarismo branco”. Publicamente, já defendeu o direito do governo executar as emendas.

— Respeitamos o Legislativo, mas quem executa o orçamento somos nós — disse o presidente, durante o feriado do carnaval.

Após se reunir ontem com o presidente, o líder do governo na Câmara, Vitor Hugo (PSLGO), publicou vídeo no qual reba teate sede que o Orçamento deve serdes centralizado. Na semana passada, Ramos e Guedes fizeram nova rodada de conversa com Maia e Alcolumbre, além do líder de governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO) e de Domingo Neto. Apesar da tentativa, Bolsonaro não sinalizou aseus ministros se concordará com o pacto.

Outras pedras no caminho do Governo:

Abuso de autoridade

O Congresso derrubou, em setembro do ano passado, a maior parte dos vetos do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei de abuso de autoridade, aprovado na Câmara e no Senado para aumentar o controle sobre a atividade de autoridades como membros das polícias, da Justiça e do Ministério Público. O presidente havia vetado 33 dispositivos do texto aprovado. Desse total, 18 foram derrubados pelos parlamentares, e permaneceram no texto da lei.

Pacote anticrime

Principal proposta apresentada por Sergio Moro no primeiro ano de governo, o pacote virou lei com um texto bem diferente do original, após várias modificações feitas pelo Congresso. O chamado “excludente de ilicitude”, que já existe na lei mas que seria ampliado segundo a proposta de Moro, foi derrubado pelos parlamentares. A previsão da execução de pena a partir da condenação em segunda instância também foi retirada do pacote.

Estrutura do governo

O governo também esbarrou no Congresso na hora de fazer mudanças em sua estrutura. A intenção de Bolsonaro era, por exemplo, deslocar a Funai, que cuida da demarcação de terras indígenas, para o Ministério da Agricultura. Mas o órgão permaneceu sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça. A pasta comandada por Moro, porém, perdeu o Coaf, órgão importante para investigar crimes financeiros, que foi para o Banco Central.

Bolsonaro diz ser de 2015 vídeo que cita facada de 2018

O presidente Jair Bolsonaro passou a maior parte dos 34 minutos da transmissão ao vivo pela internet na noite de ontem fazendo ataques a jornalistas e à imprensa, contrariado com reportagens sobre ele e seu governo. Acusou a jornalista Vera Magalhães, do “Estado de S.Paulo”, de ter mentido. Ela revelou na terça-feira que o presidente repassou no WhatsApp um vídeo relacionado ao ato convocado contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro afirmou que a convocação seria de 2015, mas o vídeo publicado pela jornalista, e também obtido pelo GLOBO, trata do atentado sofrido por ele em 2018 e de sua posse no ano passado.

O presidente disse estar “apanhando” de “praticamente quase toda a mídia brasileira” há três dias, e citou os jornais O GLOBO, “Folha de S.Paulo” e “O Estado de S.Paulo” e o Jornal Nacional, da TV Globo:

— Então esse vídeo deve estar rodando por aí, vou botar no meu Facebook daqui a pouco. É um vídeo que eu peço o comparecimento do pessoal no dia 15 de março de 2015, que, por coincidência, foi num domingo, e daí, pelo que parece, né, Vera Magalhães, você pegou esse vídeo.

Para comprovar que o vídeo era de 2015, o presidente citou que até o seu semblante estava diferente, mais jovem. Até a conclusão desta edição, no entanto, ele não divulgou essa gravação que prometeu.

Na verdade, a reportagem apontou que o presidente enviou um vídeo em tom emotivo, com uma mensagem dizendo que “o Brasil é nosso, não dos políticos de sempre”. Consta também o nome do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que na semana passada foi flagrado acusando o Congresso de chantagear o governo.

Bolsonaro prosseguiu dizendo que Vera conseguiu só um print do vídeo, mas a jornalista publicou a gravação.

Em nota, “O Estado de S.Paulo” lamentou o ataque. “Ao agir assim, ignorando os fatos, endossa conteúdos falsos”, diz o texto.

O primeiro tópico da transmissão ao vivo foi um ataque ao colunista da Época Guilherme Amado. O jornalista publicou uma nota de que as “mesas de café da manhã de Jair Bolsonaro na eleição eram fakes”, pensadas em passar a imagem de uma pessoa simples, citando ter recebido a informação de uma pessoa com livre acesso à família do presidente.

— Não vou baixar o nível aqui para dizer quem é essa fonte. Essa fonte, com toda a certeza, conhece o Guilherme desde quando ele nasceu. Mas tudo bem — declarou Bolsonaro, que ainda chamou Amado de “bocó da mídia”.

Amado respondeu que sua informação tem origem em uma fonte até hoje próxima à família do presidente, que pediu anonimato, e foi confirmada com outras duas pessoas.

Ao fazer ataques a Vera Magalhães, o presidente afirmou que sofre críticas da imprensa por ter reduzido gastos com publicidade. Bolsonaro disse na sequência que vai se reunir com empresários em São Paulo no mês que vem e pedirá que eles não anunciem em jornais e revistas como a Época e a “Folha de S.Paulo”.

— Pô, não anunciem lá, porque um jornal que só mente o tempo todo, trabalha contra o governo.

Em meio às críticas à imprensa na transmissão, Bolsonaro falou sobre a estreia da CNN Brasil e disse que será uma rede diferente da Globo, “pelo que eu estou sabendo”. Ele sugeriu que seus ministros não concedam entrevistas para emissoras sem “compromisso com a verdade”:

— Torço para que isso seja real, realmente, para que a gente possa fazer com o que os nossos ministros vão dar entrevista para essa televisão.