O Globo, n.31.586, 29/01/2020. Editoriais. p.2

Não é possível o Enem continuar a ser fonte de crises

 

Criado em 1998, no final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o Enem, Exame Nacional do Ensino Médio, serviria para avaliar os estudantes que concluíssem o ciclo básico. Seria uma das ferramentas que comporiam o painel de controle da qualidade da rede de ensino do país, pública e privada. Antes, voava-se às cegas.

Nestes 21 anos o teste cresceu, terminou convertido em um gigantesco vestibular, usado como chave para a entrada em universidades públicas e até privadas em todo o país. Mas, pelo menos desde 2009, quase a cada ano o Enem é abalado por uma grave falha. Tornou-se uma fonte de temores para milhões de alunos e familiares. Não fosse bastante a tensão que cerca uma prova que decide como será vida no ano seguinte de muitos jovens e pais.

Em 2009, quando o exame recebia um novo formato, “O Estado de S.Paulo” revelou que a prova havia vazado. De maneira irrefutável: roubada na gráfica, ela foi oferecida à repórter do jornal. Suspenso o Enem, o teste terminou sendo refeito durante dois meses, e ao exame remarcado faltou 1,5 milhão de inscritos. Afinal, parte das universidades, como o tempo passou, desligou-se do Enem. Houve ainda anulação de questões e divulgação de gabarito errado.

O que tem acontecido com o Enem deste ano, no governo Bolsonaro, sob a guarda nada confiável do ministro da Educação, Abraham Weintraub, está, portanto, dentro de uma longa cadeia de fatos que comprovam a incapacidade de vários governos de gerirem o Enem, talvez pelo seu gigantismo. O que não exime ministro e sua equipe.

Weintraub, combatente da “guerra cultural” que a extrema direita do governo Bolsonaro move contra inimigos ideológicos, chegou a responsabilizar “esquerdistas” por mais este desastre no Enem. Pelo ridículo, recuou, ao menos por ora. Devido a falhas creditadas à gráfica contratada pelo MEC/Inep, provas foram corrigidas com base em gabaritos errados. Uma aberração. Se não fossem estudantes estranharem suas notas e entrarem nas redes sociais para reclamar, porque não foram ouvidos no MEC, o ministro ficaria comemorando o grande “sucesso” do exame.

Sem segurança absoluta de que a correção das provas passara a ser fidedigna, a Justiça, a pedido do Ministério Público e da Defensoria Pública, suspendeu as inscrições no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), onde os estudantes escolhem as faculdades, e o acesso ao Programa Universidade para Todos (Prouni), de concessão de bolsas. Ontem, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) permitiu ao MEC voltar a processar os resultados.

Mas só aumenta a gravidade do problema: é inadmissível que um sistema de seleção que desta vez teve 5 milhões de inscritos se torne a cada ano menos confiável, sem que haja ações do poder público para restabelecer sua credibilidade.Só há paliativos.