O Globo, n. 31527, 01/12/2019. Sociedade, p. 39

Artigo: a chantagem florestal de Ricardo Salles

Carlos Rittl


Que diferença um ano faz. No começo de seu mandato, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, justificou assim sua rejeição às negociações internacionais em torno do clima: “Nossa prioridade no ministério não é ficar mandando grupo de 20, 30 pessoas viajando o mundo inteiro de executiva e ficando em hotel e comendo por conta do governo para discutir como vai estar o mundo daqui a 500 anos”.NãosesabeemqueclasseSallesvoaráparaMadripara participar da 25ª Conferência da Convenção do Clima da ONU, a COP-25, que começa amanhã. Mas, ao menos no discurso, sua visão sobre o encontro parece ter mudado. No dia 19 de novembro, confrontado com a catástrofe da aceleração do desmatamento na Amazônia, Salles chamou a imprensa para dizer que tinha a resposta para o problema: cobrar dos países ricos, na COP-25, recursos “compatíveis com o desafio de preservação da Amazônia”, que “até agora não recebemos”.

Não será a primeira vez que uma autoridade brasileira tenta obter da comunidade internacional recursos para a proteção da floresta. Mas Salles inova aos er oprime ironeg acionista do clima aira uma CO P pedir dinheiro para resolver um problema que ele não acha que seja causa dopo rações humanas. E, mais grave, afazê-lo num momento em que o governo brasileiro já demonstrou que não tem interesse em resolver o desmatamento, essa “questão cultural”. É como se um inadimplente entrasse num banco exigindo um aumento em seu limite de crédito, alegando que costumava ser um bom pagador... Antes de abri raconta. Em entrevista, Salles calculou a suposta dívida dos países ricos com o Brasil em US$ 10 bilhões por ano — 10% de todo o financiamento climático prometido no Acordo de Paris. Ele afirma ainda que o Brasil já fez demais pelo clima. Eque, par afaz ermais, deveria receber pelo calote supostamente tomado. Coma truculência de praxe, tem imposto esse pagamento como condição para sentar-se à mesa de negociações.

Não, Salles, ninguém deve nada ao Brasil. Issoéu ma estupidez técnica, ética e política. Técnica porque a meta do Brasil no Acordo de Paris não é condicionada. Ao assumir o compromisso, em 2015, o país não o vinculou ao aporte de recursos internacionais. E fez isso porque conseguiu reduzir o desmatamento ao mesmo tempo em que o PIB brasileiro, inclusive do agro, crescia.

Além disso, nosso inadimplente esquece que o mundo já reconheceu as reduções de CO² por desmatamento do Brasil ejá vem pagando por elas de duas maneiras: uma é o Fundo Amazônia, de R$ 3,4 bilhões. A outra são US$ 96 milhões recebidos do Fundo Verde do Clima (GCF). Foi o próprio Salles quem optou por não usar os recursos, porém: parou o Fundo Amazônia por birrinha com ONGs e não nomeou a comissão para gerenciar a verba do GCF. Estupidez ética porque, como Salles já deve ter notado, o desmatamento subiu 30% neste ano e segue em alta para 2020. O ministro disse na semana passada que ficaria feliz se a destruição subisse apenas 29% no ano que vem. O raciocínio inovador que permitiu à Noruega doar US$ 1 bilhão ao Fundo Amazônia foi justamente reduzir o desmate primeiro e receber o recurso depois. Um governo que espantou os parceiros do fundo e que admite que “potencializou” a destruição da floresta não tem moral nenhuma para cobrar recurso.

Evidentemente os negociadores que se reunirão em Madri a partir de amanhã sabem disso. Daí a chance de o ministro ter sucesso político em sua chantagem florestal é nula. Salles também sabe disso, é claro; sua ideia nunca foi realmente captar recurso para a Amazônia, mas sim gerar buzz para desviar a atenção da sua responsabilidade pelo aumento do desmatamento. Fazê-lo num palco como a COP, porém, é uma aposta alta. Como lembra um experiente diplomata sul-americano, no jogo das relações internacionais, quem não se senta à mesa geralmente é parte do cardápio.

Carlos Rittl, biólogo, é secretário-executivo da ONG Observatório do Clima.

DiCaprio rebate acusações de Bolsonaro sobre queimadas

Depois que o presidente Jair Bolsonaro acusou o ator Leonardo DiCaprio de financiar queimadas na Amazônia, o artista e ambientalista americano divulgou uma nota ontem negando ter dado verba para o WWF-Brasil no caso envolvendo as ONGs Saúde e Alegria e Instituto Aquífero do Alter do Chão, no Pará. As organizações são acusadas de promoverem incêndios criminosos em um inquérito controverso da Polícia Civil do Pará, alvo de questionamentos do Ministério Público Federal (MPF). O comunicado de DiCaprio foi divulgado um dia depois de Bolsonaro declarar que o ator estava “dando dinheiro para tacar fogo na Amazônia”.

A afirmação do presidente teria se baseado na polêmica investigação quele vou à prisão preventiva de quatro brigadistas voluntários que atuam nessas organizações. A prisão, porém, foi revogada na quinta feira, após repercussão internacional, e ode legado docas o foi destituído pelo governador do Pará. O juiz que autorizou a prisão já foi advogado da madeireira de sua família. “O futuro desses ecossistemas insubstituíveis está em jogo, e tenho orgulho de estar ao lado dos grupos que os protegem. Apesar de merecerem apoio, nós não financiamos as ONGs citadas”, diz trecho da nota de DiCaprio. 

‘Exemplo incrível’

O delegado José Humberto de Melo Jr, destituído do inquérito, afirmou que os brigadistas se beneficiaram financeiramente da venda de fotos de um incêndio florestal supostamente iniciado pelas próprias ONGs ao WWF-Brasil, que, através das imagens, teria recebido uma doação de US$ 500 mil de DiCaprio. A ONG nega as acusações.

O ator não menciona o presidente Bolsonaro na nota, mas se diz comprometido a apoiar “comunidades indígenas brasileiras, governos locais, cientistas, educadores e o público em geral que trabalha incansavelmente para proteger a Amazônia”. “Eles são um exemplo incrível, inspirador e humilde da paixão e do comprometimento necessários para salvar o meio ambiente”, diz o ator de 45 anos.

Desde a controversa prisão dos brigadistas de Alter do Chão, na última terça-feira, o núcleo duro do governo, ao lado de parlamentares bolsonaristas, repercutiu o inquérito da Polícia Civil do Pará como uma comprovação da tese do presidente, que, no passado, já havia responsabilizado ONGs pelas queimadas na Amazônia.

Na quinta-feira, durante uma transmissão ao vivo nas redes sociais, Bolsonaro repetiu a tese de que o ator fez doações ao WWF-Brasil. Na última sexta-feira, na saída do Palácio da Alvorada, ao tirar fotos e conversar com eleitores, ele respondeu aos apoiadores quando questionado sobre o assunto:

— O Leonardo DiCaprio é um cara legal, não é? Dando dinheiro para tacar fogo na Amazônia — disse.