O Globo, n.31.587, 30/01/2020. País. p.4

Multiplicação de balas

Renata Mariz

 

O governo quadruplicou o número de munições permitidas para compra por civis que têm posse ou porte de arma. A quantidade máxima passou de 50 para 200 por ano a cada arma de fogo. As novas regras foram assinadas pelos ministros da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, em portaria publicada no Diário Oficial da União de terça-feira.

A elevação na quantidade permitida chama atenção por se destinar a um público que obteve a permissão para ter arma alegando necessidade de defesa pessoal. Quem tem a posse precisa manter a arma em casa ou no trabalho (caso seja o dono ou responsável pelo estabelecimento). O civil que possui porte pode circular com o armamento. Em ambas as situações, no entanto, a obtenção da licença para ter a arma de fogo baseia-se na necessidade declarada.

—Perverte a lógica de ter a arma para se defender. Se é para defesa pessoal, para que dar 200 tiros no ano com cada arma? E se a pessoa quer treinar, irá no estande de tiro e usará a arma e a munição do local. A arma que ela tem, no caso da posse, que é o mais comum, é para ficar em casa — diz Natália Pollachi, coordenadora do Instituto Sou da Paz, que faz pesquisas na área de segurança pública.

A portaria também acrescentou novas categorias à lista das que podem comprar até 600 munições no ano. Passam a ter essa permissão uma série de profissionais, como guardas prisionais, guardas portuários, auditores da Receita e do Trabalho.

Essa quantidade era prevista, anteriormente, apenas para integrantes das Forças Armadas e para policiais federais e estaduais.

A norma editada é uma regulamentação prevista no Decreto 10.030, de setembro de 2019. Nele, ficou estabelecido que “ato conjunto do Ministro de Estado da Defesa e do Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública estabelecerá as quantidades de munições passíveis de aquisição pelas pessoas físicas autorizadas a adquirir ou portar arma de fogo”. Esse decreto faz parte de uma série de oito normas semelhantes

baixadas por Bolsonaro em 2019 sobre posse e porte de armas e munições. Quatro delas estão válidas e o restante foi revogado.

Um desses decretos ainda válidos aumentou a quantidade de munições permitidas a categoria de colecionadores, atiradores e caçadores, conhecidos pela sigla CAC — que não se confundem com civis que têm posse ou porte de arma de fogo. Até 2018, havia um número máximo de projéteis para os atiradores, dependendo do grau de destreza, que variava de nível 1 a 3.

 

ATÉ 180 MIL MUNIÇÕES

Os atiradores de maior habilidade (nível 3) podiam comprar até 20 mil cartuchos novos e até 40 mil no caso de calibres específicos (.22 LR ou SR) por ano. Um decreto de junho de 2019 estabeleceu até mil munições por ano para cada arma de fogo de uso restrito e 5 mil para as de uso permitido.

Com essa nova regra editada pelo governo, o total liberado pode chegar a 180 mil munições ao ano por atirador, considerando aquisição para o limite máximo de 60 armas (30 de uso restrito e 30 de uso permitido) que a categoria passou a poder ter.

Procurado para comentar o que embasou a decisão de aumentar o número de munições para civis, o Ministério da Defesa se limitou a informar que a portaria 1.811, de 2006, disciplinava o assunto anteriormente. Essa portaria é a que fixava 50 unidades como limite máximo de munições para o cidadão — e que agora passou a 200. O Ministério da Justiça e Segurança Pública não retornou o contato do GLOBO.

O presidente Jair Bolsonaro tem como bandeira a liberação das armas, com o pressuposto de que o cidadão tem direito de se defender. Ele prometeu mudança nas regras durante a campanha e editou o primeiro decreto já no dia 15 de janeiro facilitando a concessão de posse.

Conforme o GLOBO revelou, o texto foi finalizado às pressas, na véspera da edição anunciada em coletiva de imprensa, com ajustes determinados pelo próprio Bolsonaro no sentido de ampliar as facilidades, contrariando redação menos abrangente defendida por Sergio Moro.


Mudança beneficia ‘monopólio da Taurus’, criticado pelos Bolsonaros
João Paulo Saconi 


A regulamentação do decreto governamental que amplia a quantidade máxima de munições para compra por civis cria uma demanda de mercado que beneficia, por ora, a Taurus, maior fabricante brasileira de armas. Com a medida, a penetração da empresa no mercado tende a aumentar, contrariando intenções que o presidente Jair Bolsonaro, e principalmente seus filhos, vêm sinalizando desde a campanha que o levou ao Palácio do Planalto em 2018. A principal promessa, levada adiante pelos filhos que integram a política, é a de quebrar o chamado “monopólio da Taurus” e abrir o mercado nacional para fabricantes internacionais —como a americana Sig Sauer (fornecedora do exército dos Estados Unidos) e a italiana Berretta.

JOINT VENTURE

A ideia de acabar com o domínio da empresa brasileira vem sendo encampada principalmente pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e pelo senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ). Em viagem à Índia, no início da semana, Eduardo disse que o mercado de armas em seu país é “elitista” graças a um “monopólio branco”. Flávio, por sua vez, iniciou seu mandato no Senado Federal no ano passado protocolando um projeto de lei para facilitar a chegada ao Brasil de armas e munições de origem estrangeira.

As notícias mais recentes, assim como a nova regulamentação anunciada ontem, vão na contramão do que prega a família presidencial. Também na Índia, a Taurus assinou uma joint venture com o Jendal Group, maior fabricante indiano de aço, que levará à transferência de tecnologia brasileira no setor para o país asiático.

Além do provável aumento da demanda de munições no território de origem, a empresa também exportará seu know how e terá participação de 49% no acordo, fortalecendo ainda mais sua produção e seus lucros, que já vêm subindo: até setembro do ano passado, o desempenho já estava 35% acima da margem bruta do mesmo período em 2018.

O monopólio a que os Bolsonaro se referem ocorre porque, mesmo sem restrições de importação pré-definidas, a legislação brasileira permite, desde 2004, que o Ministério da Defesa negue ou restrinja compras de material do exterior se existir fabricação de produtos similares em indústrias com valor estratégico para o Exército. A norma consta no Estatuto do Desarmamento, sancionado pelo ex-presidente Lula.

Os maiores defensores de que a regra siga como nos últimos 16 anos são, na maioria, militares que compõem parcela importante para o eleitorado do presidente e defendem o papel estratégico da produção nacional de armamentos em indústrias como a Taurus.