O Globo, n.31.618, 01/03/2020. Editoriais. p.02

Leniência dos Tribunais de Contas agrava a crise

 

A deliberada leniência de Tribunais de Contas estaduais e municipais está contribuindo para grave corrosão na aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal na Federação.

Com interpretações astutas, porém essencialmente incoerentes com a rigidez da LRF, muitos desses órgãos responsáveis pelo controle e pela fiscalização das finanças públicas têm validado artifícios contábeis que permitem expressivos aumentos de gastos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Despesas com pessoal (ativo e inativo) são o principal item dos orçamentos estaduais e municipais. A lei diz que não podem ultrapassar 60% da receita corrente líquida. Nos últimos anos, no entanto, vários Tribunais de Contas têm aceitado que desse cálculo sejam excluídos alguns itens relevantes, como pagamentos de aposentadorias e pensões.

Essa “leitura” dos parâmetros da Lei de Responsabilidade Fiscal conduziu estados como Rio Grande do Sul, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Minas Gerais e Sergipe à insolvência ou à beira da falência. A situação se repete em dois de cada três dos 5.570 municípios. Mudar a base de cálculo é a receita esperta para inflar o limite de gastos. Dá-se elasticidade ao conceito de receita corrente líquida. Para efeito contábil, passou-se a considerar como parte integrante da receita estadual os repasses de fundos nacionais como o Fundeb, destinado à educação básica, e valores recebidos como financiamento de obras, estabelecidos no Orçamento Geral da União por iniciativa do Congresso, via emendas parlamentares.

Há casos em que o Tribunal de Contas até aponta o desvio, mas o governo ou o Tribunal de Justiça estadual rejeita, com base numa peculiar interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Então, segue-se em frente com um teto de gastos de pessoal “ajustado”.

Isso aconteceu no ano passado em São Paulo. O TCE indicou que o Tribunal de Justiça estava estourando o limite de despesas. O Judiciário estadual reagiu. Argumentou que usava os “mesmos critérios” de cálculo do próprio Tribunal de Contas e, também, pela Secretaria da Fazenda e pelo Tribunal de Justiça Militar.

É provável que, nas próximas semanas, o Supremo Tribunal Federal dê uma resposta à arguição da legitimidade desse tipo de manobra contábil nos orçamentos estaduais e municipais.

Por todo o país multiplicam-se casos nos quais a complacência dos organismos de controle e fiscalização proporcionou a governadores e prefeitos meios para implodir o teto de gastos com pessoal. 

Ocultaram um desastre financeiro, os responsáveis ficaram impunes e, agora, resta uma conta extra para a sociedade pagar.