O Globo, n. 31482, 17/10/2019. País, p. 4

Impacto em 4.895 prisões

André de Souza 
Carolina Brígido
Dimitrius Dantas


O Supremo Tribunal Federal (STF) começa hoje a julgar a legalidade das prisões após condenação em segunda instância, com possibilidade de rever o entendimento adotado em 2016 e que autoriza o início da execução da pena antes do trânsito em julgado. Entre os possíveis beneficiados de uma mudança do STF está o ex presidente Lula, preso desde abril do ano passado após sua pena em primeira instância ter sido confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). O presidente do STF, Dias Toffoli, adiantou que hoje será feita a leitura do relatório do ministro Marco Aurélio Mello e a sustentação oral de advogados, da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia Geral da União, ficando os votos dos ministros para a semana que vem.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número potencial de pessoas que poderiam ser soltas com uma eventual mudança do STF é de 4.895, uma vez que representa a quantidade de mandados de prisão expedidos por tribunais que compõem a segunda instância. Mas o CNJ faz uma ressalva: dependendo do caso, o juiz poderá decretar a prisão cautelar, evitando a libertação dos presos. Seria o caso, por exemplo, de autores de crimes violentos, que ameaçariam a ordem pública.

A nota do CNJ foi uma resposta à divulgação da informação, com base no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP), gerenciado pelo próprio conselho, de que cerca de 190 mil pessoas poderiam ser liberadas. Esse é o número de todos os presos, já sentenciados, mas sem trânsito em julgado.

Na Operação Lava-Jato de Curitiba, há 103 condenados em segunda instância, dos quais 18 tiveram mandados de prisão expedidos, cumprem pena em regime fechado e, portanto, poderiam ser beneficiados. Desses, 15 teriam chances de ser libertados, a depender do alcance de uma nova regra sobre o tema.

Além de Lula, o ex-ministro José Dirceu é outro dos condenados da Lava-Jato que poderiam deixar a prisão. Já o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral e seu ex-secretário de governo Wilson Carlos não seriam soltos porque, além da condenação, têm prisões preventivas em vigor.

Bolsonaro e os ministros

Dois ministros do STF criticaram ontem a possibilidade de a Corte mudar seu entendimento sobre o tema. Para Luiz Fux, permitir que os condenados recorram por mais tempo em liberdade será um retrocesso. Já Luís Roberto Barroso avaliou que os criminosos de colarinho branco e os corruptos serão beneficiados:

— Os que são criminosos violentos, em muitos casos se justificará a manutenção da prisão preventiva. Portanto, no fundo, no fundo, o que você vai favorecer são os criminosos de colarinho branco e os corruptos.

— Nos países onde a Justiça é muito célere, até pode se cogitar do trânsito em julgado, mas no Brasil as decisões demoram muito para se solidificar. Será um retrocesso se essa jurisprudência mudar —disse Fux.

O ministro Alexandre de Moraes refuta o argumento de que uma revisão poderá levar à soltura generalizada de criminosos perigosos:

— Agora inventar fato, “se decidir assim, vai soltar 300 milhões de pessoas”, isso é um desserviço à população, porque estão informando mal. O homicida vai ser solto? O homicida fica preso desde o flagrante.

A tendência, segundo ministros ouvidos pelo GLOBO, é o plenário permitir que os condenados fiquem em liberdade por mais tempo, enquanto recorrem da sentença. Mais do que definir a situação de Lula,o que eleva a pressão sob a Corte,parte do tribunal está interessada em dar um recado para os investigadores da Lava-Jato. É possível ainda que, se confirmada a mudança, os ministros deliberem também o alcance que terá a nova decisão.

O presidente Jair Bolsonaro recebeu ontem, na véspera do julgamento, sem constar previamente na agenda, três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no Palácio do Planalto: o presidente Dias Toffoli e Alexandre de Moraes foram recebidos primeiro. Depois, foi a vez de Gilmar Mendes. Segundo Gilmar, tratou-se apenas de uma visita de cortesia.

À noite, Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, escreveu no Twitter que o país fez esforços recentes para “combater a corrupção e a impunidade” e que é necessário seguir neste caminho, sob risco de “eventual convulsão social”.

Segundo a colunista Bela Megale, a manifestação de Villas Boas causou mal-estar entre os integrantes da Corte e foi lida como uma tentativa de intimidação dos magistrados. (Colaboraram Gustavo Maia e Marco Grillo)

Como é a legislação em outros países

> As regras que determinam qual grau de jurisdição pode levar um réu à prisão variam de acordo com o sistema jurídico de cada país.

> Na França, por exemplo, as prisões podem ocorrer ainda na primeira instância, quando há decisão colegiada.

> Nas leis da Alemanha, a prisão ocorre, em geral, após a decisão da segunda instância. Os crimes mais graves, no entanto, já começam a ser analisados por órgãos colegiados que levam à prisão.

> A Itália prevê que condenados sejam detidos após a decisão das chamadas Cortes de Apelação, equivalentes à segunda instância do Judiciário no país.

> Em Portugal ,os recursos que sucedem as decisões de segunda instância são suficientes para manter os réus em liberdade até novo julgamento. A lógica recursal é semelhante à do Brasil: as instâncias superiores tratam apenas de questões processuais, mas não do mérito da causa. Em geral, apenas os crimes mais graves são analisados pela mais alta Corte portuguesa.

> O sistema jurídico dos Estados Unidos estabelece a possibilidade de que réus façam acordos e se declarem culpados. Grande parte é presa ainda na primeira instância: seja por admitir o crime ou pela avaliação de culpa feita por um júri popular.

> Na Argentina ,os recursos têm efeito suspensivo e a prisão ocorre após a decisão de segunda instância.