O Globo, n. 31530, 04/12/2019. País, p. 8

Morte de sargento da PM levou clima de tensão a Paraisópolis

Dimitrius Dantas
Guilherme Caetano
Aline Ribeiro
Ana Letícia Leão


Há pouco mais de um mês, o sargento da Polícia Militar (PM) Ronaldo Ruas, de 52 anos, foi morto por traficantes enquanto participava de uma operação na favela de Paraisópolis. Ruas pertencia à Força Tática do 16º Batalhão, grupo responsável pela ação que, na madrugada do último domingo, resultou na morte de nove pessoas em um baile funk. Desde a morte do sargento, a PM decidiu reforçar o policiamento na comunidade, o que aumentou a tensão no local onde vivem 100 mil pessoas.

“Centenas de policiais militares do Policiamento de Choque, do Policiamento de Trânsito, do Comando de Aviação e dos Batalhões da Zona Oeste intensificarão o policiamento para combater o tráfico no local e prender criminosos, sem previsão de término”, informa um trecho de comunicado da PM divulgado no dia em que Ruas foi morto.

Uma megaoperação foi feita na favela já no dia seguinte. Moradores foram revistados e houve atuação de agentes em áreas onde, em tese, existiria atividade de traficantes. De lá para cá, a PM aumentou seu efetivo no local e, segundo relatos, passou a trabalhar de forma mais ostensiva.

Um vídeo que passou a circular ontem na internet mostra um soldado agredindo jovens que passavam correndo por uma viela. Conforme as pessoas passavam, algumas delas correndo, o policial as atingia com um cassetete. Ao fundo, é possível ouvir xingamentos por parte dos oficiais.

A corporação confirmou ontem à tarde que o episódio aconteceu em 19 de novembro, dias após a morte do sargento, e duas semanas antes do baile funk do último fim de semana. Depois da divulgação das imagens, a PM afastou o agente de suas funções.

Em outras imagens, gravadas por câmeras de segurança e veiculadas ontem pela TV Globo, viaturas e motocicletas da PM aparecem chegando à comunidade enquanto o baile acontecia. Os registros mostram um policial atirando duas bombas de efeito moral em uma das ruas do local para liberar a entrada de um veículo da corporação.

Relatos de moradores indicam que, durante a confusão, policiais teriam ameaçado moradores para impedir o socorro de vítimas. Um chamado feito por uma jovem ao Samu chegou a ser cancelado por um agente do Corpo de Bombeiros, sob a alegação de que a PM já teria feito o atendimento. O cancelamento foi noticiado pelo portal G1 e confirmado pela prefeitura da capital paulista.

Pneus furados

Para os moradores de Paraisópolis, o tumulto provocado pela operação policial de domingo estava “escrito para acontecer”. Na internet, alguns jovens relataram que deixaram de frequentar o baile no último mês por causa da tensão que havia no local. Ainda assim, 5 mil pessoas participaram do último dia de festa — batizada de “baile da DZ7”, que acontecia semanalmente há dez anos.

De acordo com a PM, a morte do sargento Ruas ocorreu quando ele abordava dois suspeitos, junto com sua equipe durante uma patrulha na comunidade. Naquele momento, um terceiro homem teria disparado contra os policiais e dado início a um confronto cujas vítimas foram o policial e o atirador.

A versão difere da que é contada por moradores. Segundo eles, Ruas teria entrado em um ponto de venda de drogas para executar um traficante. Sua pistola teria falhado, permitindo que o alvo reagisse com tiros. O sargento morreu no local.

Ao mesmo tempo em que a PM informa que a presença de forma mais ostensiva na favela visa a coibir o tráfico de drogas, pessoas ouvidas pelo GLOBO relatam que um clima de retaliação por parte da polícia teria dominado o bairro no último mês. Há relatos de que pneus de carro teriam sido furados e motocicletas quebradas por agentes da PM, que nega as denúncias.

— Depois da morte do policial, o comércio não fica mais aberto até tarde. Na rua do baile, todo o mundo já sabia que não podia ter mais evento. Mas o baile continuou porque os comerciantes precisam disso. Se um fechar a porta, o outro vai lá e abre. É o que dá renda, né? — declarou um comerciante.

Durante a confusão, foram comerciantes e moradores os responsáveis por registrar em vídeo a ação dos policiais. Quem mais sofreu foi justamente quem não conhecia a comunidade. O baile atraía com frequência pessoas de fora da favela.

— O beco onde muitos estavam têm cinco saídas, mas só quem conhece sabe onde eles vão dar — explica um morador.

Ministério Público de SP vai acompanhar investigação

O Ministério Público de São Paulo vai acompanhar as investigações sobre a ação da Polícia Militar que resultou na morte de nove jovens supostamente pisoteados em um baile funk em Paraisópolis, na madrugada do último domingo.

O procurador-geral de Justiça, Gianpaolo Smanio, designou a 1ª promotora de Justiça do Tribunal do Júri, Soraia Bicudo Simões, para seguir a apuração de possíveis abusos cometidos pelos agentes na comunidade da região Sul de São Paulo.

Smanio também anunciou, em entrevista coletiva concedida ontem, que o MP irá promover um fórum de discussão sobre o episódio e sobre a organização de bailes funk, com participação de frequentadores, moradores dos locais em que as festas são promovidas e de autoridades.

Segundo o procurador-geral, o objetivo é criar uma mediação para evitar a “escalada da violência”.

— Não pode haver atitude violenta por parte da polícia, nem por parte da comunidade. É preciso colocar todos sentados à mesa para encontrarmos soluções adequadas, independentemente da apuração que for feita, ou das sanções (que podem ser aplicadas) — disse Smanio.

Sem precipitação

Apesar do anúncio, o procurador-geral não deu detalhes sobre como funcionará a força-tarefa que investiga o caso. Ele afirmou que, na segunda-feira, recebeu visitas da comunidade e de deputados interessados no caso. A criação do fórum foi acertada com esses interlocutores. A ideia de Smanio é que o grupo trate de bailes funk “de maneira global”, em busca de soluções para “essa situação que já causou vítimas”.

Questionado sobre os diversos vídeos que mostram violência policial contra jovens em Paraisópolis, o procurador disse que “qualquer afirmação é precipitada”.

— Os vídeos mostram agressões e uma atuação que precisa de apuração. Precisamos primeiro investigar o que houve. Qualquer afirmação antes de uma investigação e antes de conhecermos o fato é precipitada — afirmou Smanio.

Na segunda-feira, a pedido da ouvidoria das policiais, a Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo assumiu a investigação da conduta dos 38 policiais que participaram da ação. A decisão partiu do comandante-geral da PM paulista, Marcelo Vieira Salles.

“Não pode haver atitude violenta por parte da polícia, nem por parte da comunidade” — Gianpaolo Smanio, procurador-geral de São Paulo.