O Globo, n. 31506, 10/11/2019. Economia, p. 35

Ajuste nas contas
João Sorima Neto
Leo Branco



A proposta de emenda constitucional (PEC) Emergencial enviada pelo governo federal ao Congresso na semana passada pode resultar numa economia anual de até R$ 35 bilhões aos cofres públicos de 14 unidades da federação, considerando cortes de salários e suspensão de reajustes. O valor é equivalente a 17% do gasto com pessoal nesses estados. Avaliada pelos economistas como uma medida benéfica para resolvera situação crítica das finanças de estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a PEC deve sofrer pressão contrária de categorias de servidores durante sua tramitação no Congresso.

Uma das ações previstas na PEC é a redução de até 25% da jornada de trabalho e do salário de servidores em estados com despesas correntes acima de 95% das receitas. De acordo com dados do Tesouro, se a regra estivesse em vigor hoje, poderiam aplicá-la: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Maranhão, Mato Grosso, Tocantins, Distrito Federal, Goiás, Sergipe, Santa Catarina, Bahia, Pernambuco, Acre e Piauí. O estado em pior situação é Minas Gerais, onde os gastos correntes representaram 107,6% da arrecadação em agosto. No Rio, as despesas estavam em 97,8% da receita.

Alternativa a governos

De acordo com o economista Fábio Klein, especialista em contas públicas da consultoria Tendências, caso todos estivessem usando apenas a redução de vencimentos, a economia poderia chegar a R$ 20,4 bilhões — ou 10% do gasto com pessoal nesses estados, segundo dados do Tesouro Nacional. A conta de Klein considera somente servidores na ativa e exclui quem trabalha em áreas essenciais do governo, como educação, saúde e segurança, que ficaram de fora da proposta do governo.

— Ainda assim, seria uma alternativa para os estados conseguirem fechar suas contas — diz Klein, ao lembrar que, na folha de pagamento dos estados, os servidores de áreas essenciais (educação, saúde e segurança) representam mais de 50% do total. Além disso, 30% da folha são despendidos com servidores inativos (aposentados ou afastados) e, portanto, inatingíveis pela medida de ajuste fiscal.

A PEC prevê também a suspensão de reajustes salariais automáticos em estados com dívidas além do permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). De acordo com o economista Pedro Schneider, especialista em contas públicas no banco Itaú, a medida poderia cortar até R$ 15 bilhões em aumentos de salário hoje previstos pelas secretarias de Fazenda das 14 unidades da federação com as contas públicas desajustadas.

— O bloqueio de reajustes já está previsto aos servidores da União. A PEC estenderia isso aos demais entes federativos — diz Schneider.

Para analistas, embora as ideias trazidas pela PEC Emergencial sejam úteis para resolver crises fiscais como a do Rio Grande do Sul, em que os servidores recebem salários atrasados há quatro anos, a proposta do governo deve enfrentar percalços para entrar em vigor.

O economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, lembra que a redução de salários já estava prevista na LRF, que entrou em vigor em 2000, mas foi alvo de críticas de sindicatos e suspensa por liminar pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após dois anos.

‘Tema delicado’

Somente em agosto deste ano, a Corte mais alta do país voltou a examinar a questão, formou maioria para declarar inconstitucional esse dispositivo, mas o julgamento acabou sendo suspenso, apesar de pleitos de governadores como o gaúcho Eduardo Leite (PSDB) de poder usar a medida para sanear as contas do estado.

— Com o STF contra, fica a dúvida se parlamentares vão se desgastar com um tema delicado como a redução de salários — diz Velloso.

Há quem entenda que as medidas propostas pela PEC são apenas pontuais e estão longe de transformar a lógica de expansão desenfreada das despesas do Estado brasileiro. Para a economista Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman e ex-secretária de Fazenda de Goiás, o fato de a maioria dos servidores estaduais trabalhar em serviços essenciais enfraquece as chances de os governadores usarem o gatilho em meio a uma crise fiscal.

— É importante os estados terem esse instrumento de gestão, mas sou cética sobre a dimensão dos cortes — diz Ana Carla, que aposta em medidas como a redução de gratificações e na simplificação de carreiras do serviço público como ações com resultado no longo prazo.

Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito Público na FGV-SP, prevê dificuldades para o texto passar no Congresso. O motivo: o lobby contrário de categorias de servidores públicos com salários mais altos.

— Estas categorias serão alvos preferenciais dos governadores em busca de uma redução de despesas sem perder tanto capital político —diz Sundfeld.

As entidades sindicais já preparam a oposição à medida. Para Gustavo Miranda, coordenador geral do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe), o governo não pode jogar nas costas dos servidores o descontrole das contas públicas. Ele lembra que a situação da categoria é delicada, já que não há reajustes há cinco anos e existe déficit de profissionais.

– Se essa medida passar, certamente terá a resistência da categoria — diz Miranda.

Estados avaliam proposta

Apenas cinco estados responderam a perguntas sobre o interesse em aderir à PEC, se ela for aprovada. Em evento na Associação Comercial do Rio, na semana passada, o secretário de Fazenda do estado, Luiz Cláudio Rodrigues Carvalho, afirmou que não pretende reduzir os salários do funcionalismo estadual, mas que a aplicação dessa medida dependeria da necessidade do governo.

O governo gaúcho, em nota, diz que “o RS não tem uma medida a ser implementada de forma generalizada neste sentido, até porque muitas áreas têm número enxuto de servidores”, mas que o pacote de reforma administrativa hoje em discussão com a Assembleia gaúcha prevê “a redução de carga horária e salários a pedido do servidor entre 25% e 50%”. Em Santa Catarina, a assessoria do governador Carlos Moisés (PSL) afirma que “está analisando todos os aspectos da proposta”.

No Piauí, o governo de Wellington Dias (PT) explica que não trabalha com a possibilidade de redução de salários, uma proposta “que será analisada caso precise” após passar pelo Congresso. No Maranhão, a assessoria do governador Flávio Dino (PCdoB) diz que, após revisão de dados do Tesouro Nacional, o estado foi considerado quite com os requisitos da LRF.