O Globo, n.31.619, 02/03/2020. Editoriais. p.02

Governo deveria liderar reforma do sistema de saúde


Quando ultrapassada a emergência para contenção da epidemia do novo coronavírus, o Ministério da Saúde deveria usar o experimento até agora bem-sucedido de coordenação da rede nacional de saúde como referência na gestão de um amplo projeto de reforma do Sistema Único de Saúde, em que parte dos problemas tem origem em má gerência e em excesso de burocracia.

A crise na saúde é nacional. Em 2019, 11 estados reduziram serviços à população por falta de recursos. Rio, Amazonas e Maranhão lideram a lista. No ano passado, em 40% do país, foram fechados 17 hospitais e 30 unidades básicas de atendimento — ou seja, quase quatro por mês —, além de cortes em consultórios e laboratórios especializados.

As deficiências setoriais continuam no topo dos problemas indicados como mais graves pela população nas pesquisas de opinião. Esse quadro se repete há mais de uma década, o que evidencia a dificuldade de diferentes governos em equacioná-lo, ao menos naquilo que é mais premente e visível: a atenção básica.

Proliferam diagnósticos da crise. O Banco Mundial já demonstrou em estudo que, de 2003 a 2017, houve um rápido crescimento dos gastos com saúde no Brasil, sempre superior à da renda por habitante — medida na divisão do Produto Interno Bruto pela população.

Quando os gastos com saúde crescem continuamente e absorvem uma parte significativa da riqueza que a economia de um país produz, tem-se um problema de sustentabilidade econômica e fiscal no longo prazo. Estima-se que o sistema de saúde tenha custado R$ 22 bilhões em 2014. Mantido o ritmo de crescimento, em 2030 o dispêndio nacional com saúde irá a R$ 700 bilhões. Se medidas de aumento da eficiência nos serviços públicos forem implementadas, calcula o Banco Mundial, será possível economia de quase R$ 1 trilhão na próxima década e meia — equivalente a uma reforma da Previdência aprovada pelo Congresso no ano passado.

É vital a revisão dos incentivos setoriais. Estima-se que dos gastos totais do país com saúde, metade corresponda a renúncias fiscais em benefício da parcela da população (40%) atendida por empresas privadas. Sobra outra metade de recursos para cobertura de serviços à maioria (60%) dos brasileiros que depende integralmente da rede pública. Trata-se de uma distorção, com efeitos óbvios no processo de concentração de renda.

O Ministério da Saúde deveria liderar a condução da reforma do sistema. É questão política relevante. A solução começa na organização do debate sobre escolhas fundamentais, como na definição dos limites no acesso a serviços e tecnologias disponíveis na rede pública médico-hospitalar, além do redesenho do papel suplementar do setor privado, com uma ampla e profunda revisão dos incentivos setoriais.