O Globo, n. 31507, 11/11/2019. Mundo, p. 28

Bolívia perdeu chance de desfecho negociado
Claudia Antunes


O relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) que apontou irregularidades na apuração da eleição de 20 de outubro deu a Evo Morales a âncora de que ele necessitava desesperadamente para buscar uma saída política para a crise na Bolívia, que se avolumava com uma violência cada vez maior desde a votação. A radicalização da oposição, no entanto, impediu um desfecho institucional e pacífico para o impasse com a realização de um novo pleito.

A História da Bolívia desde a independência, em 1825, é feita de golpes, revoluções, contrarrevoluções, governos instáveis e alijamento da maioria indígena do centro do poder. Apenas entre 2001 e 2005, os bolivianos tiveram quatro presidentes. A eleição do aimará Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), em 2005, proporcionou ao país seu governo mais estável, um crescimento econômico de em média 5% ao ano por 14 anos e a redução da pobreza de 60% para 34%.

No entanto, Morales cometeu um pecado político capital ao ignorar o resultado negativo do referendo que ele mesmo convocou, em fevereiro de 2016, para mudar a Constituição a fim de que pudesse concorrer a um quarto mandato — ele cumpria o segundo sob a atual Carta, de 2009, que só permite uma reeleição.

Sob o argumento de que eleger e ser eleito é um direito humano, Morales contrariou a vontade majoritária da população e candidatou-se de novo. Como o Chile também vem demonstrando, no entanto, o avanço socioeconômico provoca novas demandas. Principalmente nos centros urbanos, o líder boliviano chegou à eleição de 20 de outubro com sua legitimidade erodida, diante de um sentimento popular crescente de que a alternância no poder se tornara necessária. O Tribunal Supremo Eleitoral, que aceitou o registro de sua candidatura, também foi posto sob suspeição.

Pela primeira vez nas quatro eleições que disputou, Morales não teve mais de 50% dos votos. Segundo o resultado oficial, ficou com 47,08%, contra 36,51% do seu principal opositor, o ex-presidente Carlos Mesa. Com isso, foi declarado vencedor no primeiro turno por uma margem mínima, de 0,57% dos votos — na Bolívia, para evitar um segundo turno são necessários ao menos 40% dos votos, com uma diferença de 10 pontos sobre o segundo colocado.

Radicalização

Mesa contestou o resultado e convocou protestos, o que levou o presidente a negociar com a OEA a realização da auditoria dos votos. Tido como um político moderado, o ex-presidente logo perdeu espaço para setores mais radicais da oposição, hoje representados por Luis Fernando Camacho, um empresário que lidera o Comitê Cívico do departamento (estado) oriental de Santa Cruz, reduto anti-MAS.

Sem partido e ultraconservador, o “Macho Camacho”, como é conhecido, vinha dizendo que“expulsaria o diabo” do palácio presidencial e adotou um discurso golpista, convocando militares e policiais a se amotinarem contra Morales. Desde que ele tomou a frente dos protestos, há pouco mais de uma semana, ocorreram episódios como a humilhação pública de uma prefeita do MAS e o incêndio de casas de dirigentes pró-Morales, como o governador de Oruro e o presidente da Câmara. Desde sexta-feira, Morales não conseguia chegar ao palácio presidencial em La Paz, que perdeu a proteção policial. Ele estava despachando do hangar presidencial na base da Força Aérea em El Alto, vizinha à capital.

A convocação de novas eleições, portanto, esteve longe de solucionara polarização extrema em que a Bolívia recaiu. Mesa exigia que Morales não saísse de novo como candidato, decisão que o presidente demissionário não chegou a tomar. Como afirmou no Twitter o jornalista argentino Pablo Stefanoni, um dos maiores conhecedores do país andino, restava verse a deriva antidemocrática de Morales, ao insistir em disputar o quarto mandato, seria resolvida em marcos democráticos ou com um revanchismo também autoritário. A segunda hipótese se confirmou.