O Globo, n. 31537, 11/12/2019. Mundo, p. 25

‘Crescer para pagar a dívida’

Janaína Figueiredo


Ao tomar posse ontem como presidente da Argentina, o peronista Alberto Fernández prometeu governar com “respeito às diferenças”, pregou a “unidade de toda a Argentina, em prol da construção de um novo contrato social fraterno e solidário”, afirmou que sua prioridade inicial será o combate à fome e disse que o país precisa crescer para poder pagar seus credores externos, incluindo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Além disso, fez um importante aceno ao Brasil, pregando o entendimento entre os governos dos dois países, para os quais planeja uma “agenda ambiciosa”.

Ao lado da vice-presidente também empossada, a ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015), Fernández afirmou que seu antecessor, Mauricio Macri, termina o mandato“deixando um país em situação de virtual default”da dívida externa e disse que sente estar “passando pelo mesmo labirinto” que cruzou com o ex presidente Néstor Kirchner (2003-2007), de quem foi chefe de Gabinete e que assumiu após uma moratória.

Mercosul como prioridade

A crise econômica e social ocupou um espaço central no discurso do novo presidente no Congresso. Segundo Fernández, seu governo recebe um país “frágil, prostrado e ferido”, sem condições de saldar seus compromissos, e que errou ao seguir “receitas de fora”.

— Para poder pagar, é preciso crescer primeiro. Vamos construir uma relação construtiva com o FMI. O país quer pagar, mas carece de capacidade. Os credores assumiram o risco de investir num modelo que fracassou no mundo várias vezes — disse ele, referindo-se ao crescimento da dívida durante o governo Macri e à queda do PIB argentino neste ano, que deve chegar a 3%.

Antes do discurso, Fernández recebeu a faixa presidencial de Macri. Os dois se abraçaram duas vezes, amistosamente. Cristina, no entanto, apenas estendeu a mão ao receber o cumprimento do presidente que sai, sem lhe dirigir o olhar. Além dos novos ministros, incluindo o da Economia, Martín Guzmán, jovem discípulo do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz, tiveram lugar de destaque na posse o filho de Fernández, o artista performático Estanislao, e a companheira, Fabíola Yañez, jornalista e atriz.

Fernández afirmou que o Mercosul continuará sendo prioridade, e que a relação com o Brasil, um dos principais parceiros comerciais argentinos, “vai além de qualquer conjuntura” e das “diferenças entre os que governam”. Ele disse que pretende construir entre os dois países “uma agenda ambiciosa, inovadora e criativa, respaldada na irmandade histórica de nossos povos”, mas deixou claro que as políticas que defende se distanciam da agenda liberal do governo Bolsonaro.

— A Argentina quer integrar-se,mas com inteligência, protegendo a produção nacional. Queremos relações maduras com todos os países. A América Latina é nosso lugar comum. Queremos reforçar o Mercosul e a integração regional — afirmou.

Entre os convidados estrangeiros, estava o vice-presidente Hamilton Mourão, enviado por decisão de última hora do presidente Jair Bolsonaro. Para o novo presidente da Argentina, os dois países têm “um futuro de progressos compartilhados”.

Um dos momentos mais aplaudidos do discurso foi quando Fernández falou do seu projeto de reforma da Justiça e de intervenção na Agência Federal de Inteligência (AFI), acabando com os fundos secretos da entidade criados por Macri.

Diante dos nove processos judiciais enfrentados por Cristina sob acusação de corrupção, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro, Fernández respaldou a teoria de que existe perseguição judicial aos dirigentes do kirchnerismo, e afirmou que“nunca mais” haverá“uma Justiça contaminada por serviços de inteligência, por operadores judiciais, procedimentos obscuros e linchamentos midiáticos”.

— Sem Justiça independente, não há República nem democracia — disse.

— Nunca mais a uma Justiça que decide e persegue pelos ventos políticos do momento.

Ele defendeu também uma imprensa “independente do poder”.

Emergência alimentar

Fernández começou o discurso lembrando que no mesmo dia, há 36 anos, tomou posse o presidente Raúl Alfonsín, pondo fim “à mais cruel das ditaduras” vivida pelo país. Ele pregou a “convivência e respeito às diferenças”.

— Venho convocara unida dede toda a Argentina, em prol da construção de um novo contrato social fraterno e solidário — disse.

— Os grandes muros que temos que superar para pôr a Argentina de pé são os do rancor e ódio, da fome e do desperdício de nossas energias produtivas. Todos e todas devemos ser capazes de conviver nas diferenças.

O novo presidente, referindo-se à taxa de pobreza, que chegou a 40% da população, anunciou que a primeira reunião do Ministério será dedicada a um “plano integral contra a fome ”.

A Argentina está isolada dos mercados e sua taxa de risco é uma das mais altas do mundo. No governo Macri, a dívida externa passou de 28% para 60% do PIB, e a dívida pública, de 53% do PIB para 76%. A inflação prevista para este ano é de 54%. Economistas estimam que as reservas líquidas do Banco Central seriam inferiores a US$ 10 bilhões, enquanto os pagamentos de dívida previstos para 2020 superam US$ 20 bilhões.

Em agosto, o governo Macri pediu que o FMI adiasse os prazos de pagamento das parcelas do empréstimo de US$ 50 bilhões concedido à Argentina em 2018, no que chamou de “reestruturação” da dívida.

— Vamos li garos motores da economia. A estrada é estreita, complexa. Não há lugar para dogmas mágicos. Vai levar tempo — concluiu Fernández.