O Globo, n. 31538, 12/12/2019. País, p. 4

Após alterações: o pacote possível anticrime

Gustavo Maia
Bruno Góes
Isabella Macedo


Uma semana após passar pela Câmara, o pacote anticrime, que altera o Código Penal, a Lei de Execução Penal e outras normas que tratam de segurança pública, foi aprovado ontem pelo Senado. O projeto chegará às mãos de Jair Bolsonaro para sanção com um texto diferente do que foi entregue pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, ao Congresso em fevereiro, o que deve resultar em vetos do presidente.

Os parlamentares mantiveram, entre outras medidas, o aumento do tempo máximo de cumprimento de pena de 30 para 40 anos, o endurecimento da pena para casos de homicídios com arma de fogo de uso restrito e a atuação de Varas Criminais Colegiadas para julgar acusados de integrar milícias. Retiraram, no entanto, pontos polêmicos, como o excludente de ilicitude, que muda o conceito de legítima defesa, e incluíram outros que desagradam Moro, como a figura do juiz de garantia.

Pelo texto aprovado, o juiz de garantia seria um magistrado que fiscalizaria a legalidade das investigações e teria o poder impedir possíveis excessos por parte do juiz que dá a sentença. Também poderia revogar medidas cautelares, como a prisão preventiva, instrumento fundamental de Moro para fazer a Lava-Jato avançar.

Senadores da base governista dizem que esse é um dos itens que podem ser vetados por Bolsonaro por recomendação do ministro da Justiça, que viu outros pontos serem desidratados pelo Congresso. Parlamentares disseram, de forma reservada, que o presidente deve ser orientado a vetar até quatro pontos.

Além do juiz de garantia, no rol das possibilidades de veto está a permissão de penas alternativas em caso de condenação por má gestão na administração. Segundo um senador, esse item seria considerado por Moro como um “jabuti”, termo usado no Congresso para se referir a trechos de projetos que não têm relação com o seu tema.

Parlamentares ouvidos pelo GLOBO admitem que a criação da figura do juiz de garantia foi uma recado direto a Moro. Deputados de centro e da oposição consideram que o ministro atropelou procedimento legais ao atuar na Lava-Jato. O sentimento de que Moro não procedeu de forma correta durante a operação se intensificou no Congresso após o vazamento de mensagens atribuídas ao ex-juiz.

Comemoração

A possibilidade de vetos foi aventada na votação do Senado. Parlamentares que defendem o texto da forma aprovada se anteciparam e pediram ao líder de governo na Casa, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), peça a Bolsonaro que não o faça.

— Quero fazer um apelo: que a gente derrube possíveis vetos — disse o senador Rogério Carvalho (PTSE), alegando que o texto foi amplamente discutido na Câmara.

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEMAP), negou que haja um acordo com Bolsonaro sobre eventuais vetos. Moro não se manifestou publicamente contra a existência do juiz de garantia. Discretamente, entretanto, deu sinais de que a proposta não o agrada. Na Câmara, parlamentares defensores da Lava-Jato, como deputados do PSL e do Novo, tentaram em plenário retirar do pacote a criação do novo tipo de magistrado.

Na votação, o líder do PT, Humberto Costa (PE), comemorou a aprovação do juiz de garantia. Ele disse que o pacote tem suas imperfeições e medidas questionáveis, mas o resultado é “bem melhor do que a proposta inicial”.

Estratégia

Procurado pelo GLOBO, o ministro da Justiça não quis se manifestar. Respondeu, por mensagem de texto, que não faria comentários.

Senadores simpáticos a Moro criticaram as alterações feitas pela Câmara, mas acabaram se convencendo de que não seria estratégico mudar o texto novamente no Senado para voltar à proposta original. Isso porque o projeto teria de ser votado novamente pela Câmara, o que ficaria para o ano que vem. Os insatisfeitos prometem brigar pela aprovação das propostas que foram cortadas por meio de outros projetos de lei em 2020.

Líder do PSL, Major Olímpio (SP) comemorou a aprovação célere do projeto, mas reclamou da exclusão de alguns pontos:

— Devo dizer que o ótimo é inimigo do bom. Se tentássemos ou tentarmos resgatar pontos que são fundamentais ainda nesse pacote de medidas, poderíamos comprometer a necessária agilidade para ter em execução a grande maioria dos conteúdos do pacote.

Uma das propostas de Moro rejeitada pelo Congresso é a mudança do conceito de legítima defesa. Na iniciativa de Moro, havia uma alteração no Código Penal que poderia beneficiar agentes públicos. O juiz poderia “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la” se o excesso em ações de autoridades decorresse “de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. A proposta de “plea bargain” também foi descartada pelos parlamentares. O instituto permitiria que suspeitos de crimes graves confessassem seus crimes em troca de uma pena menor, sem necessidade de julgamento.

O ministro da Justiça também tentou incluir a prisão após condenação em segunda instância no pacote, mas o tema foi descartado pelo grupo de trabalho da Câmara e a decisão foi confirmada pelo plenário da Casa e do Senado.

Apesar das derrotas, Moro se esforçou para valorizar os pontos que permaneceram no pacote. Em entrevistas nos últimos dias, ele destacou, por exemplo, a proibição de progressão de regime para condenados por organização criminosa que permaneçam na cadeia vinculados a facções do crime organizado e a proibição de saída temporária de quem foi condenado por crime hediondo.

Prisão em 2ª instância deve ir ao plenário do Senado

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), recolheu assinaturas na noite de anteontem para apresentar um recurso e levar ao plenário da Casa o projeto de lei que institui a prisão após condenação em segunda instância por meio de alterações no Código de Processo Penal (CPP), aprovado ontem pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A ação de Bezerra faz parte do acordo costurado para garantir a aprovação do pacote anticrime antes do fim do ano.

O acerto incluiu deixar a decisão sobre a prisão em segunda instância para 2020. Embora esse tema seja uma pauta prioritária para alguns integrantes do governo, como o ministro da Justiça, Sergio Moro, aliados do presidente Jair Bolsonaro concordaram com o acordo porque possibilitou que a tramitação do anticrime fosse finalizada e, mesmo se aprovada no Senado, a prisão em segunda instância não seria votada pela Câmara este ano.

A CCJ concluiu ontem a aprovação, em turno suplementar, do projeto. O texto tramita de forma conclusiva na comissão e, por isso, pode seguir diretamente para a Câmara. Para levá-lo ao plenário do Senado, é preciso apresentar um recurso apoiado por nove senadores. A estratégia é ingressar com o documento de modo que não haja tempo hábil para o Senado votar o texto. O ano legislativo deve ser encerrado na próxima terça-feira, com sessão conjunta do Congresso para votar o Orçamento do ano que vem.

Questionado sobre a atitude de Bezerra, Bolsonaro afirmou que ele “tem autonomia” e que nem tudo que o líder faz deve ser colocado na sua “conta”:

— Ele é líder do governo, mas tem autonomia. Tá ok? Não é tudo que ele faz agora que tem que botar na minha conta. É como alguém do terceiro escalão dá alguma declaração, vocês botam na minha conta, como se eu fosse responsável por mais de 20 mil comissionados que tem no governo — disse.

O presidente não quis comentar a estratégia de priorizar o pacote anticrime, dizendo que o Congresso é independente:

— O Parlamento é outro Poder. Está escrito na Constituição que é independente. Eles decidem o que fazer nessa questão aí.