O Globo, n. 31478, 13/10/2019. Opinião, p. 2

Como o Estado distribui injustiças sociais



A ideia de que o Brasil não é um país pobre, mas injusto, tem sido reforçada desde que a apresentação pelo governo Temer de uma proposta de mudanças no sistema de seguridade passou a fazer com que circulasseumgrandevolumededadossobreasdistorçõesnopagamentodeaposentadorias e pensões. Além do desequilíbrio que a legislação que rege os benefícios causa nas contas públicas, há graves distorções que aprofundam a má distribuição de renda e tornam o Brasil um dos países mais iníquos.

Na Previdência, é irrefutável a injustiça social promovida pela disparidade entre a aposentadoria do funcionalismo público e a da grande massa de trabalhadores do setor privado, dependentes do INSS, em que o benefício máximo é de R$ 5.839,45 contra valores acima de dez mil e até vinte mil reais em corporações do serviço público. Mas o sistema previdenciário é apenas um dos mecanismos que funcionam no país para concentrar a renda. Há outros também eficientes e até menos visíveis. O economista Arminio Fraga, presidente do conselho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), no texto “Estado, desigualdade e crescimento no Brasil”, relaciona indicadores e causas de distorções sociais, propondo objetivos de redução de gastos públicos, incluindo subsídios, quase nunca explícitos. “Não é segredo e tampouco exagero observar que muita gente enriqueceu no Brasil pela via da captura do Estado”, observa. As benesses conseguidas por corporações do funcionalismo são exemplares. Mas também há empresários em busca de incentivos e subsídios, e classes sociais que desejam manter vantagens tributárias.

Tudo somado, constata Arminio, no Brasil aquedada desigualdade causada pela ação do Estado é das menores do mundo. Porque as transferências feitas pelo poder público beneficiam os mais ricos. O cálculo do coeficiente de Gini, termômetro da desigualdade (quanto mais próximo de um, piora distribuição de renda; quanto mais próximo de zero, melhor), feito considerando-se a renda disponível, ou seja, depois das transferências (programas sociais, devoluções, por exemplo) e da incidência de tributos diretos, indica que, entre vários países, o Brasil é o menos equânime. Ou seja, no fim das contas, o Estado de fato ajuda a concentrara renda.

A comparação feita como mesmo indicador, de 1990 a 2017, entre o Brasil, a Alemanha, os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — em que estão as nações mais ricas —, o Chile e os Estados Unidos mostra que a distribuição de rendano Brasil é a pior. A capacidade do Estado de injetar dinheiro no bolso das pessoas é grande. Considere-se que as despesas com Previdência e o funcionalismo federal absorvem 80% dos gastos primários do Orçamento (sem considerar a conta dos juros da dívida interna). Por sua vez, os dispêndios primários do Brasil são muito elevados em proporção do PIB. Estatísticas do Fundo Monetário colocam o país no mesmo nível da Suíça e apenas um pouco abaixo de China e Estados Unidos, países com pesados orçamentos militares.

O problema é como são feitos os gastos. Arminio Fraga afirma que o estado atua com frequência “como um Robin Hood às avessas” — não dando ao pobre, ou tirando dele, para destinar ao rico. É preciso preocupar-se com estes canais de transferências de injustiça social: subsídios creditícios, regimes tributários especiais,deduções que privilegiam as classes de renda mais alta, entre outros. Há muito trabalho a ser feito, com objetivo de recuperar a capacidade de o Estado investir de forma a melhorar a qualidade de vida da população —saneamento, educação, saúde, segurança, infraestrutura em geral, além do apoio a pesquisas, muito afetado nesta crise. Arminio calcula que em até dez anos pode ser feita uma economia de nove pontos percentuais do PIB em ajustes no funcionalismo, na Previdência, em subsídios e gastos tributários, o que também permitiria reduzir a elevada carga tributária.