O Globo, n. 31510, 14/11/2019. Economia, p. 17

Sinal de alerta: Turbulência na América Latina e guerra comercial levam dólar a R$ 4,18, 2ª maior cotação registrada
Rennan Setti

Bruno Rosa
João Sorima Neto


A instabilidade política na América Latina, que culminou com a renúncia do presidente da Bolívia, afeta a percepção de risco dos investidores e levou o dólar a fechar na segunda maior cotação já registrada no país, R$ 4,18. O impasse na guerra comercial de EUA e China também influenciou a moeda.

A turbulência política em diversos países da América Latina, que cresceu ao longo do último mês e culminou na renúncia do presidente boliviano Evo Morales esta semana, já afeta anpercepção de risco dos investidores para a região e se reflete no mercado financeiro. Um dos canais de “contágio” foi o câmbio, com o dólar fechando ontem e malta de 0,42%, aR $4,185, segundam aior cotação já registrada. O impasse nas negociações sobre a guerra comercial entre EUA e China também influenciou na desvalorização do real e das moedas de países vizinhos.

A cotação de fechamento do dólar ontem foi a maior desde o recorde de R$ 4,195 registrado em 13 de setembro do ano passado, durante as eleições. A Bolsa de São Paulo recuou 0,65%, aos 106.059 pontos, sua segunda queda seguida.

De acordo com analistas, a percepção dos investidores sobre a América Latina vem sofrendo uma sequência de abalos nos últimos meses. O primeiro deles foi a vitória da oposição nas primárias das eleições argentinas em agosto, que foi sucedida por uma moratória parcial na dívida do país. O peronista Alberto Fernández acabou vencendo o pleito há duas semanas e vai substituir Mauricio Macri, considerado pró-mercado pelos investidores.

No Chile, tido como o país mais estável da região e cuja economia é a mais aberta, uma série de manifestações colocou em xeque o governo do conservador Sebastián Piñera, que tenta agora apaziguar os protestos com uma nova Constituição. Na Bolívia, o presidente Evo Morales renunciou e exilou-se no México após manifestações que questionavam sua tentativa de obter um novo mandato.

Moedas mais fracas

A turbulência se traduziu em enfraquecimento cambial. O peso chileno foi amoeda que mais se desvalorizou frente ao dólar em todo o mundo este mês, recuando 6,8%. Todas as principais divisas da região perderam valor — o dólar comercial iniciou o mês valendo R$ 4 frente ao real. Nas Bolsas, o índice MSCI Latin America — composto por 117 ações da região e no qual o Brasil pesa 64% — recuou 4,4% no mês.

Ontem à noite, o Banco Central do Chile anunciou intervenção de US$ 4 bilhões até janeiro no mercado cambial na tentativa de conter a desvalorização. E aprova de que o mercado brasileiro tem sido influenciado pelos vizinhos é o fato de que o anúncio levou à valorização do real no mercado à vista no fim da sessão (o dólar comercial já havia fechado).

— Enquanto as Bolsas americanas atingiram suas máximas históricas, os ativos latino-americanos claramente tiveram desempenho ruim com os investidores assumindo cautela diante da turbulência.Ofato de o peso chileno e o real estarem em seus menores patamar e sé um claro sinal disso — avalia o economista alemão BerndBerg, ex-estrategista para emergentes do Société Générale, acrescentando que, “historicamente”, o Brasil sofre “contágio” de crises em seus vizinhos.

Mesmo que o Brasil não passe pela mesma turbulência dos seus pares, alguns fatores contribuem para que seus efeitos se manifestem no mercado local, explica Bernard Tamler, economista da GAP Asset Management. Um deles é o fato de muitos investidores estrangeiros enxergarem a América Latina como uma espécie de conglomerado.

— Investidores que estão no Brasil há muito tempo não colocam tudo no mesmo saco. Mas ver caos social alarmante até em países que eram tidos como estáveis, como o Chile, levanta temor de que algo semelhante possa ocorrer por aqui — diz Christopher Garman, da consultoria Eurasia Group.

Tamler lembra ainda que os juros brasileiros no menor patamar já visto e o entendimento de que os EUA devem parar de cortar suas taxas diminuem a atração de investimento de curto prazo para o mercado doméstico, o que pressiona o real.

— Tornou-se um desafio convencer o investidor internacional a investir na América Latina. A região se tornou complicada demais para o gestorde portfólio, que prefere teses de investimento mais simples de compreender— observa Italo Lombardi, estrategista para América Latinado Crédit Agricole.

Crescimento baixo

Se o presente é preocupante, o futuro tende a ser ainda menos auspicioso, estima Alberto Ramos, do Goldman Sachs. Ele enxerga um “caldeirão de fatores” que devem afetar negativamente apercepção de investimento na região para 2020 e 2021.

— Temos uma situação de baixo crescimento, perspectivas ruins para a economia, corrupção, impunidade e provisões inadequadas de infraestrutura e serviços públicos. E há uma insatisfação com as estruturas políticas tradicionais, com movimentos nas ruas — diz Ramos, acrescentando que a região não cresce acima de 2% desde 2016.

O impasse na guerra comercial entre EUA e China, que tem impacto direto em países emergentes, agrava o quadro. Enquanto Pequim reluta em fixar um compromisso numérico no texto de um possível acordo, o presidente americano Donald Trump multiplica declarações contraditórias, ora dizendo que um acordo está próximo, ora ameaçando elevar “substancialmente” tarifas dos produtos chineses se não chegarem a um consenso.

Mas Luciano Rostagno, estrategista-chefe do banco Mizuho, acredita que não dá para assumir um “cenário catastrófico” sobre o investimento estrangeiro no Brasil, sobretudo em privatizações ou concessões.

— A Argentina já está em crise econômica há algum tempo, mas o Brasil sempre se blindou — pondera.

Segundo Saulo Stefanone Alle, especialista em Direito Internacional do Peixoto & CuryAdv ogados, acrise na região impõe a necessidade de de que o governo do Brasil “envie mensagens comprometidas em demonstrar que adem ocra ciaém adura eque as alternâncias de poder não serão capazes de comprometer seus negócios.”

— Tirar proveito político eleitoral, com manifestações pouco refletidas e estratégicas, enfraquece os planos de longo prazo dos investidores — critica.

“Investidores que estão no Brasil há muito tempo não colocam tudo no mesmo saco. Mas ver caos social alarmante até em países que eram tidos como estáveis, como o Chile, levanta temor de que algo semelhante possa ocorrer por aqui” 

Christopher Garman, da consultoria Eurasia Group

“Tornou-se um desafio convencer o investidor internacional a investir na América Latina. A região se tornou complicada demais para o gestor de portfólio, que prefere teses de investimento mais simples de compreender” 

Italo Lombardi, estrategista para América Latina do Crédit Agricole

O que pesa no mercado

1 Crise institucional no comando da Bolívia

Embora a Bolívia seja pouco relevante economicamente na região, a crise institucional no comando do país é um catalisadores das ansiedades dos investidores com a América Latina. Acusações de fraudes em eleições que já eram contestadas antes de acontecerem levaram à renúncia e à fuga para o México do presidente Evo Morales. Em sessão sem quórum, a segunda vice-presidente do Senado autodeclarou-se presidente, em movimento também alvo de questionamentos, que deixa um vácuo de poder no país. Observadores temem que o caos social transborde para países vizinhos.

2 Protestos em série no Chile

Considerado um dos países mais estáveis da região, o Chile convive há um mês com a maior onda de protestos desde o fim da ditadura militar, em 1990, que já deixou pelo menos 20 mortos e mais de dois mil feridos. Na terça-feira, uma greve geral foi organizada com o objetivo de pressionar o governo de Sebastián Piñera a aprofundar as reformas sociais e convocar uma Assembleia Constituinte. Embora apresente uma das maiores taxas de crescimento da região, o Chile convive com desigualdade elevada, enquanto reformas liberais do tempo da ditadura reduziram acesso a serviços públicos e seguridade social.

3 Mudança na diretriz econômica argentina

A vitória peronista na Argentina no fim de outubro deve pôr fim à malsucedida empreitada reformista do presidente conservador Maurício Macri. Embora o governo Macri tenha sido incapaz de acabar com a inflação e recuperar o crescimento, analistas temem que o governo de Alberto Fernández retome a agenda econômica intervencionista da ex-presidente Cristina Kirchner, que será sua vice. Já após as primárias, essa perspectiva levou a um salto do dólar, que foi seguido pela decretação de moratória parcial e controle cambial por Macri.

4 Guerra comercial entre EUA e China

A guerra comercial, iniciada logo após a posse de Donald Trump, tem sido uma das maiores fontes de instabilidade nos mercados globais e não dá sinais claros de arrefecimento. Embora as duas maiores economias do mundo mantenham negociações frequentes, poucos avanços foram feitos para a retirada de tarifas impostas dos dois lados. Para piorar, Trump vem dando declarações contraditórias nas últimas semanas, ora insinuando que um acordo está próximo, ora redobrando suas ameaças de imposição de novas taxas sobre produtos chineses.