O Globo, n. 31540, 14/12/2019. País, p. 8

Mourão minimiza Al-5: “Passam a ideia que todo dia alguém em cassado”

Juliana Castro


O vice-presidente da República, Antônio Hamilton Mourão, minimizou, em entrevista ao site Huffpost Brasil, o Ato Institucional número 5 (AI-5), considerado pelos historiadores como a medida mais dura da ditadura militar, na qual se constituiu uma espécie de carta branca para o governo punir os opositores políticos. Mourão afirmou que é preciso ver quantas vezes o ato, que permitiu fechar o Congresso Nacional e cassar parlamentares, foi efetivamente usado. Um dia antes, o presidente Jair Bolsonaro fez referência a um dos instrumentos de tortura usados pela ditadura, ao afirmar que colocará "no pau de arara" ministro que tiver envolvimento em corrupção. — O Ato Institucional número 5 surgiu fruto de uma situação que se vivia aqui no país no fim dos anos 1960. Foi o grande instrumento autoritário que os presidentes militares tiveram à mão. É importante que depois se pesquise quantas vezes ele foi utilizado efetivamente durante os dez anos que ele vigorou. Porque muitas vezes se passa a ideia que todo dia alguém era cassado, alguém era afastado. E não funcionou dessa forma. É importante ainda que a História venha à luz de forma correta — afirmou Mourão.

Poderes ao presidente

O AI-5 completou ontem 51 anos. O documento foi baixado pelo governo do general Arthur da Costa e Silva, em 1968, que ficou conhecido como "o ano que não acabou". Uma das medidas previstas pelo Ato Institucional foi o aumento dos poderes do presidente da República, que passava a ter autonomia para decretar, sem intermédio do Judiciário, o fechamento do Congresso Nacional e intervir nos estados e municípios. Era permitida também a cassação de mandatos parlamentares e a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos. Questionado se sabia dizer quantas vezes o documento foi usado, Mourão disse desconhecer a resposta e citou ele próprio o fato de o ato ter sido usado para fechar o Congresso em dezembro de 1968, quando foi editado, e em 1977 com a criação da figura de senador biônico. —Nem eu sei. Mas não foi a quantidade que se diz. Por exemplo, o fechamento do Congresso acho que houve duas vezes. Foi logo que ele foi implementado, no fim de 1968, início de 1969, e em 1977, quando o presidente (Ernesto) Geisel colocou aquele famoso "Pacote de Abril", que colocou a figura do senador biônico. For amas duas vezes que o Congresso foi fechado com o uso do AI-5. Mourão disse ainda que o AI-5 foi um "instrumento de exceção", mas na mesma entrevista refutou o termo "ditadura" para se referir ao período de regime militar. —Vamos colocar a coisa da seguinte forma: em primeiro lugar eu discordo do termo "ditadura" para o período de presidentes militares. Para mim, foi um período autoritário, com uma legislação de exceção, em que se teve que enfrentar uma guerrilha comunista e que terminou por levar que essa legislação vigorasse durante 10 anos. Mourão disse ainda que o deputado Eduardo Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes foram infelizes ao citar o AI-5 .

Após medida, regime cassou mandatos de 322 políticos

O Ato Institucional número 5 (AI-5) foi editado pelo então presidente militar Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968. O documento suspendeu as liberdades individuais dos brasileiros, fechando o Congresso Nacional, cassando centenas de parlamentares e dando poderes plenos ao presidente para nomear interventores em estados e municípios. Durante seus dez anos de vigência, o AI-5 fundamentou a cassação de 110 deputados federais e de sete senadores, além de 161 deputados estaduais, 22 prefeitos e 22 vereadores.

No total, essas cassações descartaram arbitrariamente mais de seis milhões de votos que elegeram, pelo país, políticos que perderam posteriormente seus mandatos. Após a instituição do AI-5, o Congresso permaneceu fechado por dez meses: seria reaberto apenas em outubro de 1969, para a realização das eleições presidenciais que acabariam conduzindo Emílio Garrastazu Médici à Presidência da República e elegendo como vice Augusto Rademaker.

Por meio do AI-5, também foram cassados três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Outros alvos do ato institucional foram professores universitários e pesquisadores que defendiam uma posição crítica ao regime militar. Qualquer cidadão acusado de crime político poderia ser detido sem direito a habeas corpus, de acordo com o texto do AI-5. A partir do documento, centenas de pessoas foram presas sem justificativa ou direito a defesa, por tempo indeterminado. Pesquisador do Centro de Documentação Pública da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV), o professor Sérgio Praça lembra que o AI-5 acabou com a pretensão de setores minoritários das Forças Armadas, representados anteriormente pelo presidente Castelo Branco, que pretendiam devolver o poder rapidamente aos civis. Ele destaca também que o AI-5 foi utilizado para legitimar uma série de práticas que não estavam expressamente declaradas nele.

— Àquela altura, havia clareza sobre três coisas: que os civis não voltariam ao poder tão cedo, que a liberdade política tinha sofrido um baque enorme e que a imprensa estaria sujeita à censura prévia. As incertezas eram sobre quanto tempo o Congresso ficaria fechado e se haveria tortura ou não. O AI-5 foi decisivo para o uso desenfreado da tortura, porque era a legislação que, tacitamente, permitia isto. Ele não dizia que podia torturar sem problemas, dava um entendimento de que tudo era permitido para perseguir os comunistas.

Opiniões estavam 'guardadas'

> Historiados ouvidos pelo GLOBO disseram que as declarações de governistas e do presidente Jair Bolsonaro sobre a ditadura precisam ser "denunciadas" e repercutidas, mas que é preciso cuidado para que isso não tire a atenção das políticas públicas.

> — Eles estão com o poder do Estado e vão empregar esse poder para fazer tudo no sentido de divulgar seus pontos de vista. Vai ser uma grande batalha a respeito do assunto. Bolsonaro, seus filhos e correligionários têm um procedimento padrão, que também não é novidade no âmbito mundial, que é de formular acusações. Não se pode ficar a reboque dessas frases que causam choque. Essas declarações são absurdas e precisam ser denunciadas, mas é preciso que o centro do debate seja não as declarações, mas as medidas efetivas do governo. A questão fica obscurecida porque a atenção está nessas declarações absurdas. Faz uma nuvem de fumaça e não se vê as políticas que merecem ser discutidas — avaliou o historiador Daniel Aarão Reis, professor da UFF.

> Autor do livro "Ditadura militar, esquerdas e sociedade", Aarão Reis explica que declarações de governistas e de Bolsonaro são uma tendência da sociedade que foi, durante anos, subestimada. O historiador diz que antes admiradores da extrema-direita guardavam mais as opiniões, mas agora encontraram eco para se manifestarem.

> Professora da PUC, a historiadora Maria Celina D'Araújo afirmou que o comportamento de minimizar a ditadura é típico de militares:

> — Vejo como cultura militar. Este governo tem uma cultura militar, e os militares nunca admitiram que foram ditadores, que houve tortura, desrespeito a direitos humanos. Qualquer oportunidade que seja dada, eles vão minimizar, vão dizer que não foi bem assim, que foi exagero.