O Globo, n. 31512, 16/11/2019. Mundo, p. 24

Acordo histórico


Quatro semanas depois da eclosão de protestos que começaram por causa de um aumento na passagem do metrô de Santiago e evoluíram para a reivindicação de mudanças no modelo socioeconômico, congressistas do Chile anunciaram na madrugada de ontem um acordo que dará início ao processo para a redação de um anova Constituição, uma das principais demandas dos manifestantes. O acerto foi alcançado de madrugada, às 2h30, depois de uma maratona de 48 horas de negociações entre representantes de quase todos os partidos, da direita à esquerda.

O principal ponto do acordo é um plebiscito, que será realizado em abril e terá algumas opções, começando pela pergunta principal: se a populaçãoquerou não mudara Carta Magna, redigida em 1980, durante a ditadura de Augusto Pinochet,e que atribui ao Estado um papel secundário na provisão de saúde, educação e aposentadorias. Depois, o eleitor decidirá quem formará a ConvençãoConstituinte, se um órgão misto, com 50% de atuais congressistas e 50% de novos integrantes eleitos, ou se através de uma Constituinte exclusiva também a ser eleita. O quórum para acordos será de dois terços dos constituintes.A Constituição deverá partir d oz ero,is toé, a Carta atual não será considerada como base. Houve controvérsia antes do acordo sobre esse ponto — a União Democrática Independente (UDI), que faz parte da coalizão do presidente Sebastián Piñera, queria que, em casos onde não houvesse a maioria de dois terços, os artigos constitucionais atuais fossem mantidos. A proposta acabou derrotada em favor da chamada “folha em branco”. Ao fim do processo, anova Constituição será submetida a um referendo.

Bolsa e peso sobem

Os mercados financeiros reagiram bem ao acordo, com um aumento de mais de 8% nas ações da Bolsa local — que haviam caído 13% desde o início dos protestos, em 18 de outubro — e o peso se valorizou, depois de queda recorde na quarta-feira. Os partidos do governo (além da UDI, a Renovação Nacional, de Piñera, e o Evolução Política) eram contra a possibilidade de uma Constituinte totalmente eleita. Eles aceitaram essa possibilidade em troca do alto quórum de dois terços. O único partido que não participou do acordo foi o Comunista (PCCh), contrário ao quórum por julgar que uma minoria pode bloquear anova Carta. A Frente Ampla, coalizão de esquerda criada em 2017 eque ficou em terceiro na eleição presidencial daquele ano, com 20% dos votos, assinou o acordo. Os dirigentesdo PC, mais tarde, disseram que apoiarão o processo e participarão dele.

A previsão é de que, após o plebiscito, os constituintes sejam eleitos em outubro de 2020, com sufrágio obrigatório — uma diferença em relação ao sistema atual do Chile, onde ovo toé facultativo. A Constituinte terá nove meses para redigira nova Carta, prorrogáveis por três meses. Pessoas que ocupem cargos públicos ou eletivos deverão interromper suas funções para dedicar-se à Constituinte.

O primeiro dos 12 pontos do acordo fala da necessidade do restabelecimento da ordem pública, em meio a saques e outros atos de violência que já deixaram ao menos 20 mortos, e do respeito aos direitos humanos. “As partes que assinam este acordo garantem seu compromisso coma restauração da paz e da ordem pública no Chile e o pleno respeito aos direitos humanos e às instituições democráticas”, afirma. Ao anunciar o acordo, o presidente do Senado, Jaime Quintana, do Partido pela Democracia (PPD),dec entro-esquerda, disse que a nova Constituição representa um amplo esforço de todo o espectro político: — Assumimos a responsabilidade com uma resposta da política com maiúscula, da boa política. Se tivessem me perguntado 24 horas antes, eu diria que era impossível.

Piñera mudou de ideia

A porta-voz Karla Rubi la reos ministros do Interior,Gonza lo Blumel, e da Secretaria de Governo, Felipe Ward, que representaram Piñera na negociação, prometeram que a sociedade terá participação ativa na elaboração do novo marco constitucional.

— [O acordo] é um primeiro passo fundamental para começara construir nosso novo pacto social. A sociedade terá um papel de protagonismo, participará ativamente de nossa Carta fundamental — disse Blumel. — Foram tempos difíceis, de sofrimento, mas também de esperança. Aprendemos e concordamos em que este acordo nos permitirá encontrar e construir um país melhor, mais inclusivo. Ward disse que o governo demonstrou boa vontade ao aceitar mudara Carta. — Provavelmente teria sido mais fácil optar pela força. O presidente decidiu optar pela paz. E provavelmente era essa a decisão que a sociedade queria — disse. Piñera era inicialmente contrário a uma reforma constitucional, e seu partido barrou uma iniciativa nesse sentido apresentada pela expresidente Michelle Bachelet em seu segundo mandato (2010-2014).

O plano de Bachelet incluía propostas como a inviolabilidade dos direitos humanos, a consagração do direito à saúde e à educação e a igualdade salarial de homens e mulheres. Embora a atual Carta tenha recebido dezenas de emendas, que acabaram com senadores nomeados por militares e pelo Executivo e mudaram o sistema eleitoral para torná-lo mais proporcional, os artigos sobre direitos sociais não foram modificados.