O Globo, n. 31541, 15/12/2019. Rio, p. 16-17

Seis retratos da crise da saúde relatos de tempos de dor e desesperança

Selma Schmidt


A crise da Saúde do Rio tem cara, nome e sobrenome. É uma tragédia social. De um lado, doentes, muitos em estado gravíssimo, que chegam às emergências sem esperança de atendimento. Do outro, médicos, enfermeiros, auxiliares e agentes comunitários, alguns diletantes que só atuam na rede pública, que, sem salários há dois meses, estão com aluguel atrasado ou foram despejados e não dão conta sequer de pagar a escola dos filhos.

Seis histórias, contadas pelo GLOBO, revelam a face cruel das dificuldades vividas por todos que dependem do setor ou trabalham nas unidades do município. Os profissionais são parte importante desse ciclo vicioso e enfrentam até a falta de dinheiro da passagem para chegar ao trabalho e garantir um mínimo de assistência aos pacientes. Quem precisa reconhece o esforço. Nas últimas semanas, os flagrantes mostravam pessoas desesperadas, implorando por socorro e protestando na porta das unidades, mas gratas pela dedicação de todos. Muitas equipes resistem e mantêm o serviço, apesar dos equipamentos quebrados, da falta de insumos e medicamentos.

Na batalha para “internar” mais um paciente no corredor, vale até usar macas, outro item em falta, do Samu. Funcionários de OSs foram os mais fortemente afetados pela falta de repasses da prefeitura. Mas não faltam casos de superação e solidariedade. Sem salário, mas em melhor condição porque também trabalha no Hospital Getúlio Vargas, que é do estado, a pediatra Andrea Cabral, do Hospital Albert Schweitzer, já doou cestas básicas aos colegas e, há 15 dias, participou de vaquinha para sepultar uma enfermeira do Albert, de pouco mais de 30 anos. Casada com um funcionário da mesma unidade e mãe de três filhos, ela morreu após ter a depressão agravada pelo drama financeiro. Em outra ponta da crise, Pâmela Guedes, que está com o marido em estado grave no Hospital Pedro II, passou os últimos dias dedicada a abaná-lo, dia e noite, para que ele não fosse infectado, já que a unidade está literalmente entregue às moscas.

Despejada e longe dos quatro filhos

Sem dinheiro para pagar o aluguel, a agente comunitária de saúde Mariza Barbosa Rodrigues, de 43 anos, foi despejada da casa onde morava, em Colégio, bairro onde trabalha no Centro Municipal de Saúde Carlos Cruz Lima. Ela conseguiu um canto para morar, mas teve que deixar os quatro filhos que sustenta sozinha — gêmeos de 6 anos e outros dois de 10 e 23 — com familiares. Desde 2005 como agente de saúde, Mariza nunca passou por tantas dificuldades.

— Estou sem meus filhos e corro o risco de ter novamente que sair de casa. Passei a viver às custas da ajuda de parentes e amigos. A população está sofrendo, e os profissionais de saúde estão doentes. O prefeito, que prometeu cuidar das pessoas, está nos matando — desabafa.

Sem salário, médica doa cestas básicas a colegas

Com o pagamento do Albert Schweitzer atrasado e sem ter um consultório particular para ajudara compor o salário, a pediatra Andrea Cabral, de 49 anos, ainda se considera privilegiada. Ela mantém as contas em dia porque também trabalha no Hospital Estadual Getúlio Vargas e tema ajudado marido. Mas sabe que, na rede municipal, é uma exceção. Diante do drama de colegas que não têm o que comer, Andrea participa de vaquinhas para comprar cestas básicas. Apesar de já ter assistido a outras crises, elas e comove coma luta diária dos profissionais do Albert, onde faltam antibióticos, fios de sutura e até álcool.

— Vivi o auge da crise no estado e, agora, no município, passo pelo mesmo problema. Não é fácil conviver com ador de tantos doentes e dos funcionários.

Agente pediu à mulher que pagasse pensão

Humilhado. É assim que se sente o agente comunitário de saúde Romildo Pereira da Rocha, que não tem conseguido pagar a pensão alimentícia da filha de 14 anos, fruto de seu primeiro casamento. Com medo de ser preso, ele pediu que a atual mulher, professora de educação infantil da prefeitura, assumisse a responsabilidade sobre a despesa até que a situação melhore.

— É muita humilhação a minha esposa ter que assumir a pensão da minha filha. Estou ainda mais preocupado porque, como ela trabalha para o município, também pode ficar sem salário — diz Romildo, funcionário do Centro Municipal de Saúde de Padre Miguel, que já está com o aluguel da casa em que mora, em Campo Grande, atrasado.

Auxiliar de enfermagem não pagou escola

Às vésperas do Natal, a auxiliar de enfermagem Aline Santos Evangelista tem uma única certeza: este ano, não vai ter ceia ou presentes. As filhas dela, de 3 e 7 anos, já vêm sendo preparadas para os tempos de cinto apertado. Cada vez que elas pedem alguma coisa, mesmo quando possível, a resposta é sempre “não”. É educação para crise.

— As crianças pedem, mas tenho que negar. Não sei o que vai ser daqui para frente. Temos que economizar para não faltar o feijão com arroz — diz a funcionária do Albert Schweitzer. Aline sobrevive com o pouco dinheiro do auxílio- doença do marido, que tem síndrome de Guillain-Barré. Ela honrou o aluguel da casa em Campo Grande, mas a mensalidade do colégio de uma das filhas está atrasada.

Mulher de paciente espanta moscas

Desde a manhã de sábado da semana passada, quando seu marido sofreu uma queda de moto, Pâmela Guedes passa os dias no Hospital Pedro II. Além de dar apoio a Carlos Eduardo Procópio de Souza,que está em estado grave, com traumatismo craniano e dois braços quebrados, a mulher tem outra missão: abanar o paciente para que as moscas que infestam a unidade não pousem nele. De quebra, ajuda a refrescar o marido, que pena num ambiente sem refrigeração.

Antes de ser internado, Carlos Eduardo ficou dois dias numa maca, esperando vaga na sala vermelha dos casos mais graves. Agora, aguarda remoção para um outro hospital porque não há cirurgião para operá-lo. — Pessoas são tratadas como lixo — lamenta Pâmela.

Enfermeira quer vender sapato para pagar contas

Ela estudou quatro anos para realizar o sonho de ser enfermeira. Mas, hoje, Perla Castilho, de 29 anos, precisa colocar a sobrevivência acima da vocação. Sem salário, já pensa em revender sapatilhas para pagar as contas e ajudar a mãe, que ficou viúva há três meses e enfrenta a burocracia para obter a pensão do INSS. Para gastar menos com transporte, ela, assim como os colegas, mudou a escala de trabalho. Os plantões de 12h e 60h de descanso passaram a ser de 24h e 72h.

— Sempre fui independente. Mas já tive que atrasar contas e, às vezes, dá vontade de chorar. Há funcionários que só não passam fome por causa da rede de solidariedade — diz Perla, aliviada porque o marido paga a alimentação da família.

Calapso na rede: receita maior, gasto menor

Os números confirmam o que qualquer paciente que depende da rede pública sabe: a saúde não tem sido prioridade da prefeitura do Rio. O último relatório da Controladoria-Geral do Município mostra que a Receita Corrente Líquida vem crescendo, e, ao mesmo tempo, o percentual destinado ao setor hospitalar está caindo. Em valores corrigidos pelo IPCA-E, a RCL passou de R$ 12,1 bilhões, de janeiro a outubro de 2017, para R$ 13,1 bilhões, no mesmo período deste ano. Enquanto isso, a fatia destinada às despesas com ações e serviços de saúde foi reduzida de 24,62% para 19,17%. Para especialistas, no entanto, a crise não se deve apenas à diminuição dos investimentos: a gestão ineficiente e a fiscalização precária também estão por trás do colapso.

— A prefeitura está se aproximando do mínimo constitucional exigido para a saúde (15% da RCC), que é muito pouco para o município do Rio. Existe uma opção política de não investir na área — afirma Gisele O’Dwyer, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz. Dados do Fincom — sistema da Câmara Municipal de acompanhamento das contas públicas da cidade — também mostra uma queda real na dotação atualizada de despesas e no que foi liquidado na saúde. Até sexta-feira, quase R$ 1 bilhão do orçamento autorizado para este ano não tinha sido executado.

— O mais preocupante, além dos cortes, é que não há uma gestão competente capaz de oferecer melhores serviços, cortando as gorduras — analisa a vereadora Teresa Bergher, que fez o levantamento a pedido do GLOBO.

Acrise fico umais visível nas unidades administradas por organizações sociais (OSs), que, sem receber pagamentos, atrasaram até dois meses os salários de seus funcionários, o que acabou afetando toda a rede. Uma vistoria da Defensoria Pública e do Ministério Público do estado, realizada nos dias 25 e 26 do mês passado, constatou uma situação crítica nos estoques das unidades com administração direta do município — no Hospital Souza Aguiar, no Centro, faltavam 52,28% da quantidade considerada ideal de remédios e 33% de materiais.

No Albert Schweitze rena Coordenação de Emergência Regional de Realengo, que têm gestão de OS, a carência de medicamentos era de 49,57% e de insumos, 20,16%. Também foram identificadas falta de profissionais e superlotação de leitos.

— A falta de gestão, de planejamento, explica essa crise — sentencia a defensora pública Alessandra Nascimento, da Subcoordenadoria de Saúde. — Existia orçamento, mas o município o contingencio uno início do governo.

A prefeitura não sabe dimensionar. Comprou 11 tomógrafos em 2017 e parte deles ainda está encaixotada, como o do Hospital Rocha Faria, em Campo Grande, que aguarda obras nas salas onde ficarão os equipamentos.

Sem neurocirurgião

No que diz respeito à falta de profissionais, a situação é mais grave em unidades administradas pela prefeitura porque há anos não são realizados concursos:

— No Salgado Filho, por exemplo, não há neurocirurgião nos fins de semana, justamente nos dias críticos, com alto índice de acidentes de trânsito — alerta Alessandra.

Mesmo críticos de OSs, como o médico e vereador Paulo Pinheiro (PSOL), dizem que elas não podem ser responsabilizadas pela crise atual.

— O modelo das OSs não deu certo, custa caro, mas o que acontece no Rio é uma crise estrutural. O prefeito deveria gerir melhor a saúde. No início deste ano, desabilitou 200 equipes do programa Saúde da Família e 2.500 profissionais foram dispensados — destacou Pinheiro.

Para Alfredo Guarischi, integrante da Câmara Técnica de Segurança do Paciente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), “as OSs são um curativo, não um tratamento”, embora, segundo ele, funcionem bem em alguns lugares, como o Instituto do Cérebro e o Hospital da Criança (ambos estaduais). Ele também acredita que as organizações sociais não podem ser responsabilizadas pelo quadro atual:

— O que está havendo é tanto um problema de gestão como de falta de coordenação. Faltam um choque de arrumação e um sistema unificado, e não único, de saúde. Ex-secretário municipal de saúde, Daniel Soranz cita a organização e o planejamento deficientes:

— A causa da crise é a desordem no sistema. Em meio a arrestos, ajuda da União e promessas de pagamentos, sobram problemas para funcionários e pacientes. Na Clínica da Família do Centro Municipal de Saúde João Barros Barreto, em Copacabana, nem o básico se encontra.

—Não temos insulina, anticoncepcional e paracetamol. Sem dinheiro para a passagem, muitos funcionários não estão vindo trabalhar — conta uma farmacêutica, sem se identificar. Procurada, a prefeitura não se manifestou. 

“Existe uma opção politica de não investir em saúde” — Gisele O’Dwyer, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

“A falta de gestão, de planejamento, explica essa  crise” — Alessandra Nascimento, defensora pública.

“Faltam um choque de arrumação e um sistema unificado, e não único, de  saúde” — Alfredo Guarischi, da Câmara Técnica de Segurança do Paciente do Cremerj.