O Globo, n. 31512, 16/11/2019. País, p. 6

Aras reage, mas Toffoli fica com senha
Aguirre Talento
Marco Grillo 
Carolina Brígido


O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, negou ontem o pedido de revogação da ordem dele ao Banco Central para acessar Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) produzidos nos últimos três anos pelo antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), hoje chamado de Unidade de Inteligência Financeira (UIF). A revogação foi pedida horas antes pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. A determinação de Toffoli para que o Banco Central enviasse os relatórios a ele foi dada no último dia 25. Na mesma ocasião, ele também ordenou que a Receita Federal encaminhasse ao STF todas as Representações Fiscais para Fins Penais (RFFP) produzidas no mesmo período. A informação foi antecipada pelo jornal “Folha de S. Paulo” e confirmada pelo GLOBO. Toffoli recebeu do Coaf um login e uma senha que permitiriam a ele acessar 19.441 relatórios do Coaf, que citam 412.484 pessoas físicas e 186.173 pessoas jurídicas. Os acessos, feitos por meio do software que reúne as comunicações dos bancos e outros setores e por meio do qual os RIFs são disseminados, são todos registrados no sistema. No pedido de revogação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, sugeriu que a medida fosse substituída por outra “de caráter não invasivo, além de fazer retornar à origem os dados que possam ter sido recebidos”. Segundo Aras, a medida é “desproporcional” e “põe em risco a integridade do sistema de inteligência financeira, podendo afetar o livre exercício de direitos fundamentais”.

Na decisão, Toffoli negou o caráter invasivo da medida, porque a Receita Federal já havia tornado disponíveis os mesmos dados “a todo o Sistema de Justiça brasileiro para adoção de medidas cabíveis, ou seja, à autoridade policial, ao Ministério Público e ao próprio Poder Judiciário”, demonstrando “transparência ao comunicar os destinatários das suas ações, o que, nem de longe, caracterizaria uma medida desproporcional e invasiva”. O ministro também explicou que, para os relatórios serem acessados, a autoridade precisa fazer um cadastro prévio. “Anoto que o STF não realizou o cadastro necessário ou teve acesso aos relatórios de inteligência”, explicou. Toffoli acrescentou que o processo é sigiloso e, por isso, os dados não estão sujeitos a divulgação. “Não se deve perder de vista que este processo, justamente por conter em seu bojo informações sensíveis, que gozam de proteção constitucional, tramita sob a cláusula do segredo de justiça, não havendo que se cogitar, portanto, da existência de qualquer medida invasiva por parte do Supremo Tribunal Federal, maior autoridade judiciária do País”, escreveu o ministro. Toffoli pediu que a UIF informe até segunda-feira quais instituições são cadastradas para receber os relatórios e, por instituição, quantos agentes estão registrados no sistema. E, ainda, quantos relatórios foram divulgados por agente público. Toffoli recebeu o acesso ao material no curso do processo em que ele determinou a suspensão de compartilhamento de dados detalhados do Coaf, Banco Central e Receita Federal com órgãos de investigação sem autorização da Justiça. O assunto será julgado no plenário do STF na próxima quarta-feira. Os RIFs não reproduzem extratos bancários, mas reúnem operações financeiras consideradas suspeitas com base em parâmetros legais. Já as representações da Receita Federal são enviadas aos órgãos de investigação quando uma apuração fiscal encontra indícios de outros crimes, como, por exemplo, lavagem de dinheiro. Para o procurador-geral da República, a determinação de Toffoli extrapola o que seria necessário.

No pedido de revogação, o procurador-geral acrescentou que não há previsão legal para um acesso tão amplo aos documentos produzidos pelo Coaf e pela Receita Federal:

“Com efeito, o acesso livre e concentrado a todo e qualquer RIF ou RFFP a um único destinatário, além de não encontrar previsão na legislação de regência, é medida que contraria as balizas mínimas estabelecidas na Recomendação n.º 29 do Gafi, de caráter cogente”.

A recomendação citada por Aras estabelece que as unidades de inteligência financeira dos países devem ser “operacionalmente independentes e autônomas” e “ter a autoridade e a capacidade para desempenhar suas funções livremente, incluindo a decisão autônoma de analisar, solicitar e/ou encaminhar ou disseminar informações específicas”. O Gafi é uma organização internacional com representantes de diversos países e que tem a finalidade de estabelecer boas práticas de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo.

A liminar concedida por Toffoli em julho para paralisar todas as investigações embasadas em relatórios do Coaf compartilhados sem decisões judiciais foi criticada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

“Trata-se de medida desproporcional que põe em risco a integridade do sistema de inteligência financeira” Augusto Aras, procurador-geral da República

Em visita ao Brasil nesta semana, o presidente da Comissão Antissuborno da OCDE, Drago Kros, cobrou que a decisão seja revertida. “Esperamos que o STF entenda que essa liminar não segue os padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro. Os efeitos negativos dessa decisão sobre a luta contra a corrupção foi um dos motivos da nossa visita (ao Brasil)”, disse, na quartafeira. Toffoli justifica a decisão tomada argumentando ser favorável ao compartilhamento de dados globais sobre movimentações financeiras, mas afirma que a disseminação de dados detalhados seria uma forma de quebra de sigilo, o que só pode ser feito por ordem judicial.