O Globo, n. 31513, 17/11/2019. Opinião, p. 2

Perpetuação no poder é doença sul-americana


A renúncia forçada de Evo Morales da presidência da Bolívia não esconde características de golpe, mas é preciso colocara crise no seu amplo contexto, incluindo o continente sul-americano. Que, assim como o Brasil, não é para amadores. Um aspecto inconfundível de qualquer regime autoritário é a inexistência de alternância no pode reeleições. Mas nem isso é capaz de certificar uma democracia, principalmente na região.

A ditadura militar brasileira, instaurada no gol pede 1964, criou um sistema de troca degenerais no Planalto, escolhidos, inicialmente, por um “dedazo” do alto comando das Forças depois ungidos num simulacro de ato democrático, na votação indireta no Congresso. Devidamente depurado por cassações e contido por uma série de legislações repressoras.

O caudilho Hugo Chávez aperfeiçoou a fórmula. Logo após ganhar sua primeira eleição para presidente da Venezuela, em 1998, conseguiu da Justiça permissão para fazer um plebiscito sobre uma Constituinte. Ganhou a consulta, porque continuava com grande apoio popular, controlou a assembleia que faria a nova Constituição e redigiu a Carta como quis. Destruiu a Venezuela, tarefa que está sendo completada pelo pupilo Nicolás Maduro.

Mesmo com eleições formalmente diretas, marca da democracia. Ou seja, eleições diretas e rotatividade no poder, vê-se, não são garantias firmes e definitivas de democracia. Faltam instituições republicanas fortes.

O boliviano Evo Morales ganhou a primeira eleição em 2006, ficou 13 anos no poder, um tempo além do que seria cabível. Copiou Lula, que assumiu em 2002 cumprindo o primeiro mandato sem desrespeitar leis básicas da economia, e estabilizou o país. O Brasil escapou da recessão, geraram-se empregos —ajudado por feliz conjuntura internacional. Lula se reelegeu e voltou a aderir ao antigo pensamento nacional-populista do PT, levando o país à grave crise de 2014 a 2016, já com Dilma no Planalto. Crise da qual o país ainda não conseguiu sair por inteiro.

Evo foi da mesma forma conservador na economia — a Bolívia cresceu em média 5% ao ano, passando ao largo da recessão que atingiu outros países sul-americanos no biênio de 2015/16. A pobreza extrema, sob Morales — renda de menos de dois dólares diários — retrocedeu de 38% para 18%. Mas caiu na armadilha da sedução da perpetuação no poder, que sempre tenta espíritos autoritários. Foi assim com Chávez e o equatoriano Rafael Correa, outro exemplo do campo nacionalista de esquerda. Morales conseguiu o terceiro mandato, queria o quarto. Convocou plebiscito sobre se queriam que se candidatasse pela quarta vez. Perdeu e não respeitou o resultado. Lançou-se e ganhou um pleito fraudado, segundo auditoria da Organização dos Estados Americanos( OE A ). Foi obrigado avoar para o exílio no México.

O projeto da eternização no poder pode ser executado em família: Néstor Kirchner passou a faixa presidencial na Casa Rosada para a mulher, Cristina. Não fosse a morte de Néstor, é provável que Cristina K. devolvesse a presidência da Argentina ao marido. Não seria novidade no país vizinho, em que o caudilho e ditador populista Juan Domingo Perón deixo upara a História cenas de aparições nas a cada da Casa Rosada ao lado da mulher, a já mito lógica Evita Perón. Bem mais tarde, elegeu com a força de seu nome Isabelita. Tudo em família. Lula tentou fazer o mesmo com Dilma, mas a presidente não cedeu e reelegeu-se.

As tragédias políticas sul-americanas se sofisticam. Mas com características permanentes: salvadores da pátria, populistas — de esquerda ou direita —, todos autoritários. Alternância no poder, instituições republicanas independentes e fortes, liberdades, eleições de fato livres e transparentes precisam ser inegociáveis. É o caminho para protegera América do Sul do seu passado.