O Globo, n. 31471, 06/10/2019. Sociedade, p. 42

Da Amazônia ao Vaticano

Eliane Oliveira
Renato Grandelle


O bispo Edson Taschetto, de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, tem um compromisso especial em 14 de dezembro. Vai à aldeia Taracuá, a cem quilômetros de sua cidade, para dar o título de padre a Sidiclei Viana Meireles, de 27 anos, um indígena da etnia tucana. No dia seguinte, o sacerdote vai estrear na paróquia local, celebrando uma missa no idioma da população nativa.

— Provavelmente ele trabalhará em alguma paróquia onde predominam fiéis de fala tucana — explica Taschetto.

— Há três anos, os bispos da Amazônia brasileira reuniram-se e escreveram uma carta ao Papa mostrando como vivíamos com poucos padres e recursos, vendo a população indígena maltratada e a destruição provocada por mineradoras. Fomos pegos de surpresa quando o Papa convocou um encontro especial para discutira região. Em outubro de 2017, Francisco convocou o Sínodo para a Amazônia, que será iniciado hoje no Vaticano e concluído no dia 27. A sede da Igreja Católica receberá cerca de 260 convidados. Além de 185 bispos —a maioria oriunda dos nove países em que o bioma está distribuído —, o Pontífice convocou líderes indígenas, ribeirinhos, cientistas, economistas e o ex-secretário-geral da ONU Ban-ki Moon.

Desde sua idealização, essa assembleia  é uma ar enade novidades. É a primeira voltada para a discussão de um território específico —normalmente são debatidas questões espirituais que dizem respeito a fiéis de todo o planeta. Além disso, sua pauta foi elaborada a partir da consulta mais abrangente já realizada pela Igreja — cerca de 87 mil habitantes da Amazônia listaram as principais carências de seu cotidiano. As entrevistas geraram um documento de 147 pontos em que, entre outros assuntos, a Santa Sé reprova a exploração predatória do meio ambiente, defende a espiritualidade dos povos indígenas e a ordenação de homens casados, escandalizando a ala conservadora do Vaticano, os “falcões”. Ao site LifeSiteNews o cardeal alemão Walter Brandmüller, um dos maiores opositores do Papa, resumiu o pensamento dos conservadores:

“O que ecologia, economia e política têm a ver com o mandato e amissão da Igreja ?”. O documento que guiará o sínodo, diz, “tem muito pouco a ver com os Evangelhos”.

Desconforto no governo

O grupo de Brandmüller não é o único a expressar abertamente sua revolta contra Francisco. Em agosto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a Agência Brasileira de Inteligência monitorou os preparativos do sínodo. O Planalto viu a realização do debate sobre a Amazônia como uma afronta à soberania nacional e ao governo, embora a assembleia tenha sido convocada um ano antes de Bolsonaro iniciar sua campanha presidencial. A ava li açã od ogo ver noé que o Brasil corre o risco de se tornar alvo de críticas com potencial de causar prejuízos ao agronegócio.

Para o Planalto, a assembleia dos bispos pode aumentar os ataques de governos estrangeiros e ONGs às queimadas na Amazônia. Outras questões delicadas à imagem do país são mencionadas no documento da Igreja, como as ameaças aos povos indígenas representadas por madeireiras ilegais, desmatamento, construção de estradas e projetos de mineração na floresta. Fontes do governo brasileiro ouvidas pelo GLOBO indicam que os militares criticaram o texto preparatório do Vaticano por passara impressão d eque a Amazôni a é um espaço transnacional, ignorando a presença dos respectivos Estados e das Forças Armadas, responsáveis pela defesa da região e por obras de interesse social, como a distribuição de alimentos e remédios à população local.

As questões foram tratadas diretamente coma cúpula da Igreja, em dois momentos, a partir de junho, por enviados de Bolsonaro ao Vaticano. A Santa Sé teria sido taxativa, esclarecendo que não há intenção de classificara Amazônia como espaço de interesse internacional. Embora o Vaticano tenha garantido que o sínodo não incluiria temas que não constam do documento preparatório, como as queimadas ocorridas nos últimos meses, o Papa declarou recentemente que a Amazônia é um problema mundial, oque poderia aumentara conotação política do encontro. Autor da encíclica “Laudato Si”, única da História da Igreja dedicada exclusivamente ao ambiente, Francisco tenta se consolidar como uma liderança mundial na defesa do desenvolvimento sustentável. Por isso, entre os convidados do sínodo está o climatologista Carlos Nobre, um dos mais conhecidos do mundo em seu setor.

O texto preparatório do sínodo apresenta a Igreja como um “rosto amazônico e missionário”. A distância entre as comunidade se a falta de sacerdotes estaria provocando um “problema pastoral grave”, fazendo o catolicismo perder terreno para os evangélicos. De acordo com o IBGE, a Região Norte é o maior palco da troca de crenças religiosas do país. Nela, em apenas uma década, entre 2000 e 2010, a população evangélica aumentou 80%, enquanto ade católicos cresceu apenas 4,3%.

O documento que introduz o sínodo sugere uma reação ousada para estancar o êxodo de fiéis. O texto diz que, embora o celibato seja uma “dádiva para a Igreja”, se deve cogitar, nas áreas mais remotas da Amazônia, a ordenação de homens casados, preferencialmente idosos indígenasr espeitados ,“mesmo que já tenham uma família constituída e estável ”.

— Não é uma desvalorização do celibato. Outras denominações católicas aceitam a ordenação de homens casados. Está na hora de acabar comesse constrangimento— avalia Edson Taschetto, um dos 58 bispos amazônicos que participam do sínodo; o Brasil terá a maior comitiva.

‘Benefícios concretos’

Alberto Ynuma Fernandez, xamã da comunidade indígena peruana Boca Pariamanu, comemora a realização do sínodo e afirma que a Igreja está entrando em uma “nova fase”:

— Além da palavra de Deus, precisamos de benefícios concretos para nossas comunidades, como o incentivo a projetos de educação. O sínodo é dividido em três etapas.

Na primeira, cada bispo apresenta a situação de sua região. Em seguida, o cardeal brasileiro Claudio Hummes, relator-geral do encontro, redige questões que serão desenvolvidas por grupos de trabalho. As propostas surgidas serão votadas em sessão plenária; as aprovadas servirão de base para o texto final, preparado por Hummes e depois entregue ao Papa. Francisco não é obrigado a obedecer as propostas do relatório, mas documentos elaborado em sínodos costumam servir com oba separa um pontificado.

O texto também não corresponde a uma política pública, embora os governos possam se inspirar nele para formular medidas de defesa da Amazônia e de sua população. Durante o período do sínodo acontecerá ainda a canonização da primeira santa nascida no Brasil, Irmã Dulce, no próximo domingo.

“O que ecologia, economia e política têm a ver com o mandato e a missão da Igreja?”

Walter Brandmüller, cardeal alemão

“Não é uma desvalorização do celibato. Outras denominações católicas aceitam a ordenação de homens casados”

Edson Taschetto, bispo de São Gabriel da Cachoeira

“Além da palavra de Deus, precisamos de benefícios concretos para nossas comunidades, como o incentivo à educação”

Alberto Ynuma Fernandez, xamã de Boca Pariamanu