O Estado de S. Paulo, n. 46873, 16/02/2022. Espaço Aberto, p. A4

Não é tempo de medo

Nicolau da Rocha Cavalcanti 


 

Com exceção dos poucos defensores da intervenção militar, a imensa maioria dos brasileiros apoia o regime democrático, com a realização periódica de eleições. O consistente apoio popular não impede, no entanto, que ano eleitoral provoque em muitos de nós um frio na barriga. Qual Congresso sairá das urnas nestas eleições? Quem ocupará pelos próximos anos a Presidência da República?

Não é sem motivo essa apreensão. As eleições de 2014 e de 2018 geraram fortes frustrações e revoltas, tanto em quem apoiou os candidatos vencedores como em quem votou nos derrotados. Em público, talvez os eleitores ainda defendam seus candidatos, mas é impossível, por exemplo, que alguém identificado com a proposta petista não tenha se surpreendido com Joaquim Levy no Ministério da Economia de Dilma Rousseff ou que alguém entusiasmado com as ideias de Paulo Guedes em 2018 não esteja decepcionado com os resultados do governo atual. Mais do que atritos entre familiares e amigos – tão visíveis nos tempos atuais –, a política pode suscitar profundas frustrações interiores.

Tem-se, assim, uma situação paradoxal. Batalhamos – ou nossos pais e avós batalharam – pela restauração da democracia, mas agora o direito ao voto parece suscitar pouco entusiasmo. Jovens (e não tão jovens) não querem votar. Nem sequer começou a campanha eleitoral, e as pesquisas de opinião já provocam prematuros sentimentos de euforia ou de melancolia, a depender do posicionamento político de cada um. Sem que nenhum voto tenha sido depositado nas urnas, o cenário já estaria definido.

Surge, então, a questão: será que o discurso democrático sobrevaloriza o voto? O tão festejado protagonismo da sociedade no regime democrático seria ilusório? Não existem respostas binárias para essas questões. Há, no entanto, um fato incontestável: são os nossos votos que elegem os governantes e parlamentares. Assim, mais do que reduzirem o voto a um exercício de autoengano, as frustrações com a política desvelam as muitas consequências do voto.

Ano eleitoral não é tempo de medo, e sim de responsabilidade. Eleições são janelas de oportunidade: para apoiar o que está funcionando, para corrigir o que está atrapalhado, para retirar da função pública quem se mostrou incapaz de suas atribuições, para incluir na vida pública novos talentos. Os efeitos do voto são impressionantes. Não há espaço para a desmobilização.

Além disso, as eleições de 2022 têm uma conotação especial. A pandemia bagunçou nossa cronologia. Os eventos prévios à covid-19 parecem situar-se noutra geração, noutro mundo. Essa peculiar percepção do tempo tem efeitos negativos, alguns perturbadores. A vida, que sempre corre, parece ter acelerado ainda mais. Mas essa específica dinâmica do tempo também pode favorecer a responsabilidade política, ao permitir um maior distanciamento.

Em certo sentido, é positivo que o ano de 2018 pareça distante. Tivemos de conviver por mais tempo com as escolhas feitas nas eleições passadas. Tudo demorou mais do que o relógio nos contou. Além de advertir sobre a responsabilidade política, este novo ritmo do tempo propicia a sensação, saudável em tantos âmbitos da vida, da “primeira vez”: votar em 2022 como se fosse a primeira vez.

A sensação de estreia gera entusiasmo, favorece a atenção e, fundamental para o exercício dos direitos políticos, recorda-nos de que sabemos pouco, que a nossa experiência política é limitada. É preciso ler mais, conversar mais, debater mais, escutar novas perspectivas. Não é estimular a insegurança, mas suscitar a necessidade de conhecer mais sobre os candidatos e suas propostas e, especialmente, sobre o próprio processo democrático, com suas várias possibilidades de participação.

Nesta trajetória, talvez possamos redescobrir um aspecto fundamental do fenômeno político. O processo é mais importante e transformador do que o resultado em si. Obviamente, o resultado das urnas é relevante, mas não é o decisivo, especialmente em médio e longo prazos. Mais do que pela vitória ou derrota de determinado partido político, a campanha e as eleições de 2022 serão produtivas se forem capazes de propiciar melhor percepção das questões coletivas e maior responsabilidade de todos com a coisa pública.

Talvez seja esta expectativa que gere frustração: nas eleições, esperamos que nossos candidatos vençam e que as coisas melhorem. É natural esperar isso, mas ao mesmo tempo é frustrante esperar tão pouco. É frustrante – e equivocado, num regime democrático – achar que o futuro comum depende tão pouco da gente.

A democracia não é apenas uma ideia. Cabe a nós realizála na prática. Quando se dá atenção ao processo – quando se vê que as coisas acontecem não apenas nas urnas, mas especialmente antes e depois delas: neste caminho de ampliar percepções, aprimorar diagnósticos, promover diálogos, construir pontes e reforçar o cuidado com o coletivo –, a mágica acontece. Os resultados da democracia deixam de depender do acaso para se tornarem a consequência natural do nosso trabalho – ou das nossas omissões.

Advogado e Jornalista