O Globo, n. 31516, 20/11/2019. País, p. 6

O futuro dos crimes financeiros
Carolina Brígido
Aguirre Talento 
André de Souza


Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estudam ampliar o alcance do julgamento de hoje sobre a legalidade do uso de dados de órgãos de controle financeiro sem autorização prévia da Justiça. Em vez de debater apenas casos relativos à Receita Federal, que compartilhou relatórios no caso concreto em julgamento, a decisão pode servir para processos iniciados a partir de informações de outras instituições, como o antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ), hoje chamado Unidade de Inteligência Financeira (UIF), o Banco Central, secretarias estaduais de Fazenda, entre outros.

Foi no processo que irá a julgamento que o presidente da Corte, Dias Toffoli, deferiu liminar pedida pelo senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ) e paralisou as investigações iniciadas a partir de dados de todos os órgãos de controle.

Em memorando enviado ontem ao STF, o procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu que o combate à corrupção pode ficar comprometido se a Corte determinar a exigência de autorização da Justiça para uso de dados financeiros quando os órgãos de controle identificam indícios de crime.

O caso concreto a ser julgado pelo STF é o recurso do Ministério Público Federal em São Paulo contra o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3). O tribunal anulou um processo sobre sonegação fiscal contra donos de um posto de combustível em São Paulo sob o argumento de que a Receita Federal repassou dados fiscais ao MP sem autorização anterior da Justiça.

SEGURANÇA JURÍDICA

O ministro Alexandre de Moraes concorda com o julgamento mais amplo da tese — que pode abranger, ainda, dados obtidos pelo Banco Central, pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelas secretarias de Fazenda estaduais.

— A lei complementar (que trata do sigilo das operações de instituições financeiras), num dos parágrafos, estende o tratamento a todos os órgãos de controle. Então é melhor já, seja qual for o posicionamento, (estender) a todos: Receita, Coaf e qualquer outro órgão de controle. Senão toda vez ter que rediscutir é cansativo, não dá segurança jurídica — afirmou Moraes.

Entretanto, o procuradorgeral da República, Augusto Aras, diverge nesse ponto. Para ele, o ideal seria restringir a discussão apenas aos dados da Receita. Em seu memorando, Aras fez duras críticas à liminar de Toffoli que paralisou as investigações em julho, atendendo à defesa de Flávio Bolsonaro.

O procurador-geral afirma que o presidente do STF ampliou indevidamente o escopo do processo contra os donos do posto de gasolina, deferindo uma liminar queci tava dados do Coaf numa ação penal que tratava de uso de informações da Receita.

Flávio Bolsonaro é investigado pelo Ministério Público do Rio com base em dados repassados pelo antigo Coaf. A suspeita é que o hoje senador tenha recorrido à prática de “rachadinha”, ou seja, a devolução de parte dos salários dos funcionários do seu antigo gabinete na Alerj.

Para Aras, se o STF decidir hoje restringir o compartilhamento com o MP de dados dos órgãos de controle, haverá enfraquecimento do combate à lavagem de dinheiro e prejuízo à imagem do Brasil junto a organismos internacionais como o Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) e o Banco Mundial.

Ministros ouvidos reservadamente pelo GLOBO apostam que o plenário, no julgamento de hoje, vai restringir o envio de informações sigilosas para abastecer investigações. A ideia é condicionar o uso de relatórios à autorização judicial. Nos bastidores, os integrantes da Corte estudam um meio-termo para não anularas investigações já em curso. A alternativa seria exigir decisão da Justiça apenas par acasos futuro se, em relação às apurações atuais, permitir que sejam validadas se passar em pelo crivo de um juiz.

Moraes lembrou que, para validar essa alternativa que define como os efeitos da decisão serão aplicados, chamada de “modulação”, seriam necessários oito dos 11 votos do plenário.

— Se a maioria entender que é constitucional o compartilhamento, continua. Se a maioria entender que é inconstitucional o compartilhamento, é nulo. Levando em conta que são direitos fundamentais, pode modular? Pode, mas precisa de oito votos. Agora, provavelmente será acirrada (a votação) — disse o ministro.

Na liminar de julho, Toffoli decidiu que órgãos de controle só poderiam compartilhar dados gerais, como a titularidade de contas e montantes globais movimentados. O procurador-geral pediu a derrubada da liminar de Toffoli, que paralisou a investigação de Flávio e outros 935 casos no país.

ENTENDA O QUE ESTÁ EM JOGO

Quais os resultados possíveis do julgamento?

O primeiro cenário é o STF autorizar o compartilhamento de dados de órgãos de controle sem autorização judicial. Outra hipótese é condicionar esse compartilhamento a uma decisão da Justiça. Nesse caso, o STF poderá “modular” a decisão, permitindo que as investigações já em curso continuem de pé, desde que um juiz autorize o uso das informações depois.

Qual impacto pode haver no caso de Flávio Bolsonaro?

Se for proibido o uso de dados do antigo Coaf sem autorização judicial, a investigação contra Flávio será anulada. Mas, se o STF decidir que é possível manter as apurações com uma decisão posterior de um juiz, Flávio continuará sob a mira do MP do Rio, que investiga a possível prática de “rachadinha” em seu antigo gabinete na Alerj.

O entendimento da PGR, os órgãos de controle e a abrangência do julgamento.

Como o julgamento tem repercussão geral, a decisão terá de ser seguida por juízes de todo o país em processos análogos. A Procuradoria-Geral da República defende que o compartilhamento de dados financeiros deve ser autorizado mesmo sem uma decisão judicial prévia, em nome do fortalecimento do combate à corrupção. Além da UIF (antigo Coaf) e da Receita Federal, são considerados órgãos de controle o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários e as secretarias de Fazenda estaduais, entre outros.

DADOS SIGILOSOS SEM DECISÃO JUDICIAL?

‘NÃO HÁ NA LEI BRASILEIRA OU DE FORA EXIGÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL’

Valdimir Aras

Professor de processo penal e regional do DF

NÃO EXISTE NAS NORMATIVAS internacionais e na brasileira nenhuma necessidade de autorização judicial para que sejam feitas comunicações diretas sobre transações suspeitas pelas autoridades. Guardadas as proporções, essa situação se assemelha à de um comerciante, seja ele pequeno ou grande, que pesquisa no cadastro negativo do Serasa para se proteger de criminosos e estelionatários. Ao fazer essa checagem, não há quebra de sigilo. Do mesmo modo que esse sistema do SPC e o Serasa dispensam autorização judicial, há o Coaf. Não se trata da Lava-Jato.

Esse sistema funciona para coibir todos aqueles que geram ativos ilícitos e que podem ser lavados. Não há exigência de autorização judicial para comunicações de transações suspeitas em nenhuma democracia estável. Podemos citar como exemplos países como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Portugal, Itália e Suíça, entre outros países. O Brasil passou a adotar esse modelo em 1998, com base na lei lavagem de dinheiro. Com isso, integramos um sistema internacional de prevenção contra lavagem de dinheiro e terrorismo no mundo. Pelo menos duas instituições internacionais demostraram preocupação com isso: o Grupo de Ação financeira Internacional (Gafi), ligado à OCDE, e o grupo de Trabalho Anticorrupção da OCDE. Por que fugir do padrão global? A pretexto de proteger que direitos? Isso só beneficia aqueles que vão se aproveitar de um sistema de persecução criminal mais lento para esconder dinheiro sujo, além de atrair criminosos para cá. Isso poderia ainda prejudicar os bancos que vão ter mais trabalho para se defender de esquemas ilícitos. No fim das contas, quem fica desprotegido é o cidadão.

‘NÃO COMPREENDEMOS A RAZÃO DE RESISTIR AO CONTROLE DO JUDICIÁRIO’

Carlos Augusto Silva dos Santos

VIVEMOS UM MOMENTO em que todos precisam se unir para o combate à corrupção. Entretanto, esse objetivo não pode ser levado adiante sem o cumprimento das garantias legais e da Constituição. É preciso lembrar também que a regra de essência é que todo expediente investigativo que acaba colocando o cidadão a responder por algo precisa ter um controle externo. A ponderação que nós fazemos em relação à questão que será julgada pelo Supremo Tribunal Federal é que o que não tem controle pode propiciar abusos. E não compreendemos a razão da resistência dos órgãos de investigação de estar estar sob o controle do Judiciário. Entendemos que isso cabe ao Judiciário.

Já tivemos anteriormente experiências ruins no Judiciário e que redundaram em anulações de sentenças. O processo não pode ser um instrumento para perseguir pessoas. Ele deve ser, sim, um instrumento de apuração de fatos que motivem a investigação. Por isso, aguardamos que esse julgamento seja concluído o quanto antes, para que as investigações contra a corrupção possam ser levadas adiante. Certamente, o Judiciário não negará qualquer expediente de investigação que tenha plausabilidade e indícios probatórios. Nós confiamos no Judiciário e o queremos forte e independente. E para que possa ser assim, precisa haver controle sobre as investigação. Não há motivo para ter resistência a isso.