O Globo, n. 31517, 21/11/2019. País, p. 7

Toffoli defende fixar limites para o uso de dados sigilosos
André de Souza
Leandro Prazeres


O Supremo Tribunal Federal (STF) começou ontem a fixar as regras para o compartilhamento de dados financeiros por órgãos de controle com o Ministério Público (MP). Relator do caso, o presidente da Corte, Dias Toffoli, defendeu que haja restrições no repasse de dados pela Receita Federal — o órgão não poderia, por exemplo, enviar extratos bancários ao MP sem autorização da Justiça.

Em relação à Unidade de Inteligência Financeira (UIF), o antigo Coaf, o ministro afirmou em nota, após o julgamento, que não propôs qualquer limitação ao uso de dados, uma vez que os relatórios do órgão não incluem informações detalhadas de movimentações financeiras.

Em plenário, ele fez a ressalva de que, em sua visão, o MP só pode pedir informações à UIF sobre cidadãos que já estejam sob investigação.

As principais dúvidas sobre o julgamento, que será retomado hoje, ainda não foram respondidas. Um ponto ainda indefinido é o que vai acontecer com a investigação do senador Flávio Bolsonaro (sem partidoRJ), um dos processos suspensos em razão de decisão liminar do presidente do STF, em julho deste ano.

O julgamento só será concluído após a manifestação dos demais ministros da Corte — são 11 no total. Os ministros ainda decidirão se há necessidade de autorização da Justiça para o compartilhamento de dados — a Procuradoria-Geral da República é contra — e, se for necessária, em que momento de uma investigação e sob que restrições ela deve ocorrer.

Em conversa com jornalistas após a sessão, Toffoli tentou ontem resumir seu voto, que foi considerado confuso até mesmo pelos outros ministros. Segundo ele, a UIF pode continuar a compartilhar informações, desde que esse material não seja usado como prova:

— Em relação ao Coaf, pode sim compartilhar informações, mas ele é uma unidade de inteligência. O que ele compartilha não pode ser usado como prova. É um meio de obtenção de prova.

Ao propor que o MP só possa solicitar relatórios à UIF sobre pessoas contra as quais já haja uma investigação em andamento ou que tenham sido alvo de um alerta emitido por unidade de inteligência, Toffoli disse pretender evitar a prática conhecida como ou “expedições de pescaria” — alusão ao ato de buscar dados contra pessoas sobre as quais não há indícios de ilícitos.

No caso dos dados compartilhados pela Receita, Toffoli defendeu uma restrição adicional ao trabalho do Ministério Público na condução dos procedimentos de investigação criminal (PICs). Hoje, é comum o MP conduzir PICs sem supervisão ou autorização judicial.

— Uma vez recebendo a representação fiscal para fins penais (emitida pela Receita), deve o Ministério Público instaurar um procedimento investigativo penal e deve necessariamente comunicar ao juízo que recebeu essa representação fiscal para termos essa supervisão judicial — disse Toffoli.

TOFFOLI E ARAS

Na conclusão do voto, Toffoli falou apenas da Receita. Disse que o Fisco poderá continuar compartilhando informações sem aval judicial, mas seguindo algumas condições. Só poderão ser repassados dados globais, como montante total movimentado, mas não informações detalhadas, nem documentos como a declaração do imposto de renda e a íntegra de extratos bancários.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, que defende o compartilhamento das informações sem exigência de autorização judicial prévia, teve um debate com Toffoli sobre a transparência no recebimento de dados financeiros pelo MP. Toffoli questionou como é feito esse recebimento.

— Cada colega preenche um formulário, recebe uma senha. Em síntese, tudo se faz de forma direta, linear e passivamente —disse Aras.

— Não há transparência — retrucou Toffoli.

Quando Aras explicou que a PGR tem um órgão próprio que cadastra as informações recebidas e encaminha à autoridade competente ao foro do investigado, Toffoli o interrompeu:

— Ou seja, muitas vezes não é a autoridade competente para investigar que recebe a informação. Foi esclarecido, era importante isso. Ou seja, não há um controle.

O VOTO DO RELATOR E O QUE FALTA SER DECIDIDO

O ministro Dias Toffoli votou para impor restrições ao compartilhamento, pelos órgãos de controle, de informações sem decisão judicial — maiores para a Receita e inexistentes para a UIF (antigo Coaf). Pelo voto do relator, as mais de 900 investigações paralisadas desde julho teriam de ser reavaliadas caso a caso.

Quais devem ser as restrições, na visão de Toffoli?

O Ministério Público só poderá pedir relatórios de inteligência

financeira (RIFs) à UIF de cidadãos contra os quais já haja uma investigação criminal ou um alerta emitido por unidade de inteligência. Não ficou claro se a UIF poderá compartilhar apenas dados globais, ou também informações mais detalhadas das movimentações suspeitas.

As restrições específicas à Receita Federal, para Toffoli: O Fisco poderá repassar ao MP sem autorização judicial apenas dados globais, mas não os detalhados. O MP, ao instaurar procedimentos de investigação (PICs) com base em dados da Receita Federal , terá de informar a Justiça para haver supervisão judicial — uma crítica possível a essa visão é que criaria mais uma etapa burocrática ao início de uma investigação. Ainda na visão de Dias Toffoli, os dados compartilhados deverão se limitar aos crimes contra a ordem tributária, contra a previdência social, descaminho, contrabando e lavagem de dinheiro.

O que são dados globais?

São informações mais gerais, como o titular de uma conta bancária e o valor total movimentado por ele, ou a diferença entre o valor movimentado e o declarado no imposto de renda.

E os dados detalhados?

Permitem conhecer com profundidade como se deu a movimentação financeira. Entre esses dados estão: de que conta foi transferido determinado valor para aquela pessoa; a data e horário da movimentação; cópia da declaração do imposto de renda.

As hipóteses para o que ainda falta ser decidido:

Se o STF seguir Toffoli e impuser restrições ao compartilhamento de informações, pode ocorrer a chamada “modulação”, para não anular as investigações já em curso. Uma alternativa seria exigir decisão judicial para compartilhamentos futuros e, em relação às apurações atuais, permitir que sejam validadas se passarem depois pelo crivo de um juiz.

Os ministros podem debater ainda o momento em que a autorização judicial deve ser pedida pelo MP. Em seu voto, Toffoli defendeu que ela aconteça assim que o MP receba os relatórios e decida abrir um procedimento de investigação.

O caso Flávio Bolsonaro

Ainda não está claro o que ocorrerá com a investigação do senador, baseada em dados compartilhados pelo antigo Coaf.