O Globo, n. 31468, 03/10/2019. País, p. 6

PF prende auditores da Receita por extorsão

Chico Otavio
Juliana Castro
Bernardo Mello


A Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) do Rio foram às ruas ontem para cumprir nove mandados de prisão preventiva (prazo indeterminado) e cinco de prisão temporária (cinco dias) contra seis servidores da Receita Federal e pessoas ligadas a eles. Os auditores e analistas do órgão são acusados de usar peças de inquéritos e de processos contra alvos da Lava-Jato, principalmente as que tratavam de acúmulo de patrimônio ou de movimentação financeira do envolvido, para cobrar vantagem indevida da vítima em troca do cancelamento de multas milionárias por sonegação fiscal.

Apontado como chefe do grupo, o auditor Marco Aurélio Canal, que nega as acusações, foi o principal alvo da ação, batizada de Armadeira (uma espécie de aranha). Ele foi preso em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Canal era supervisor nacional da Equipe Especial de Programação da Lava-Jato, criada pela Receita para restituir aos cofres públicos os valores sonegados pelos acusados. A força-tarefa do MPF não mantinha relacionamento direto com a equipe dele, uma vez que a parceria nas fases de investigação era feita com o setor de inteligência da Receita. A equipe do supervisor só atuava depois das operações ostensivas, para cobrar o imposto devido pelos investigados, sem contato com os procuradores.

Canal já foi citado nominalmente pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, em uma entrevista à GloboNews, em junho, como a pessoa que “coordenou a operação” em que seus dados e de sua mulher, Guiomar Feitosa, foram acessados. Em fevereiro deste ano, a Receita negou que o ministro e Guiomar estivessem sendo investigados pelo órgão. O caso do ministro não tem relação com a operação de ontem.

O supervisor era quem conduzia a programação de fiscalização contra os envolvidos na Lava-Jato. A equipe de Canal recebia os resultados das quebras de sigilo da força-tarefa e cruzava com as informações internas. Ao fim desse processo, selecionava os contribuintes que seriam fiscalizados.

Há, no entanto, critérios de triagem, sendo o mais importante deles o valor potencial que pode ser recuperado com a instauração de uma ação fiscal. Isso ocorre porque as equipes não conseguem investigar todos aqueles que são selecionados depois do cruzamento de dados. Dessa forma, havia sobras de dossiês, uma brecha usada pelos presos para fazer a extorsão.

Com o objetivo de garantir a isenção dos fiscais, a Receita segmenta as equipes de ação, e, por isso, há um grupo que investiga, outro programa e um terceiro que fiscaliza. Internamente, Canal era considerado o melhor programador da Receita no Brasil. Ele entrou para o serviço público em janeiro de 1995, aos 25 anos.

Dinheiro apreendido

Até o início da noite de ontem, 11 mandados de prisão haviam sido cumpridos e pouco mais de R$ 1 milhão, US$ 3,7 mil e € 3,9 mil haviam sido apreendidos com os alvos. Foram expedidos pelo juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, 39 mandados de busca e apreensão. Somente no escritório do tio de Canal, os agentes encontraram ao menos R$ 300 mil.

A operação recebeu o apoio da Corregedoria da própria Receita. O MPF apurou ainda que os alvos da extorsão não se limitavam a investigados na Lava-Jato. O esquema foi descoberto pelo MPF no Rio depois que um dos colaboradores da força-tarefa, o empresário Ricardo Siqueira Rodrigues, contou que foi procurado pelo grupo de auditores, que exigiram propina para arquivar as ações fiscais abertas contra ele.

A investida dos fiscais ocorreu depois da “Operação Rizoma”, que investigou fraudes em fundos de pensão e levou o empresário à prisão em 12 de abril do ano passado.

Outro servidor da Receita preso temporariamente é o auditor Alexandre Ferrari Araújo, da equipe de fiscalização da Delegacia da Receita na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio, conhecida como DRF/RJII. Neste endereço, as vítimas ou seus representantes eram recebidos, com hora marcada, para ouvir as primeiras propostas de propina.

O advogado Fernando Martins, responsável pela defesa de Canal, afirmou que “se trata de mais uma prisão ilegal praticada no âmbito da denominada operação Lava-Jato” e que atribui ao cliente “responsabilidades e condutas estranhas a sua atribuição funcional e pautada exclusivamente em supostas informações obtidas através de ‘ouvi dizer’ de delatores”. As demais defesas negaram os crimes. (Colaborou Leticia Gasparini)