O Globo, n. 31524, 28/11/2019. País, p. 4

Sinal verde: STF tem maioria para envio de dados sigilosos
André de Souza 
Leandro Prazeres


O Supremo Tribunal Federal (STF) formou ontem maioria de ministros com votos favoráveis ao retorno do compartilhamento com o Ministério Público (MP) dos dados sigilosos, especificamente os da Unidade de Inteligência Financeira (a UIF, antes chamada de Coaf ), sem a obrigação de autorização judicial prévia. Dos 11 integrantes da Corte, seis já se posicionaram com esse entendimento — quatro deles na sessão de ontem. O julgamento deve ser retomado hoje, às 14h.

O compartilhamento não autorizado dos dados produzidos pela UIF está suspenso desde julho deste ano, depois que o presidente do STF, Dias Toffoli, concedeu uma liminar ao senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro. Flávio é alvo de uma investigação no MP do Rio que apura a suposta prática de “rachadinha” (devolução de parte dos salários de servidores) em seu gabinete enquanto ele era deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj).

Para além do caso de Flávio, o Ministério Público Federal (MPF) indicou que ao menos 935 processos ou inquéritos conduzidos pelo órgão foram interrompidos após a decisão de Toffoli, proferida em julho. O resultado do julgamento no plenário pode levar à retomada da tramitação de parte desses casos, ou até mesmo de todos eles.

Ao fim da discussão, os ministros devem decidir os limites para o compartilhamento e se serão nos mesmos moldes para a UIF e a Receita Federal. Até agora, apenas Toffoli votou por impor ressalvas aos repasses de informações da Receita ao MP.

INDEFINIÇÕES

Os impactos sobre o caso de Flávio ainda são incertos. A principal tese da defesa do parlamentar é a de que ele teve o sigilo bancário quebrado sem autorização da Justiça depois que o antigo Coaf repassou dados detalhados sobre sua movimentação financeira ao MP. Àquela altura, antes de Toffoli conceder a liminar, prevalecia o entendimento de que não era necessária autorização judicial para que o órgão compartilhasse seus relatórios com equipes de procuradores e promotores.

Caso prevaleça a tese de que a UIF pode repassar dados ao MP sem autorização judicial, ainda será necessário que o ministro Gilmar Mendes suspenda a paralisação das investigações sobre Flávio. Isso porque a decisão de Toffoli teve efeitos gerais, mas a ordem que efetivamente suspendeu a investigação contra Flávio foi dada por Gilmar.

Outro ponto ainda indefinido no caso de Flávio é se o MP poderá ou não requerer dados financeiros à UIF e à Receita Federal sobre pessoas que ainda não estejam oficialmente investigadas. Em janeiro, quando a defesa de Flávio alegou que uma apuração sobre ele deveria ser autorizada judicialmente dada a existência de foro por prerrogativa de função, o MP do Rio informou que o senador ainda não era investigado. Àquela altura, os advogados já reclamavam sobre a suposta quebra de sigilo não autorizada pelo Coaf.

Toffoli foi o único a abordar a questão em seu voto. Para o magistrado, a solicitação dos relatórios só pode ser feita pelo MP em casos de cidadãos contra os quais já haja uma investigação criminal ou um alerta emitido por unidade de inteligência.

O julgamento no STF começou semana passada com o voto de Toffoli, relator do caso. Para ele, os dados do antigo Coaf poderão ser compartilhados sem decisão judicial porque, mesmo contendo algumas informações específicas sobre movimentações consideradas suspeitas, preservam o sigilo financeiro. Nesse ponto, ele recuou em relação à liminar que havia concedido anteriormente com a premissa de que esses dados, se “detalhados”, equivaleriam à quebra do sigilo bancário e, portanto, só poderiam ser compartilhados por meio de autorização judicial.

No caso dos dados compartilhados pela Receita, Toffoli votou para impor uma restrição adicional ao trabalho do MP na condução dos procedimentos de investigação criminal (PICs). Segundo ele, ao receber uma representação fiscal para fins penais da Receita, o MP deve abrir um procedimento investigativo penal (PIC) e necessariamente comunicar isso à Justiça, para que haja supervisão. Hoje, é comum o MP conduzir PICs sem autorização judicial.

Segundo a votar, o ministro Alexandre de Moraes discordou do presidente do STF e disse que não haveria impedimentos legais para que a Receita compartilhasse no âmbito de processos administrativos a íntegra de dados coletados por ela. Para ele, os documentos do órgão devem ser considerados provas lícitas.

CONCORDÂNCIAS

Ontem, quatro ministros votaram: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Todos acompanharam o voto de Moraes.

— Tenho possível o compartilhamento de informações entre o Fisco (Receita) e o Ministério Público, quer quando referentes a montantes globais, independentemente da instauração de procedimento fiscal, quer, quando tendo havido procedimento fiscal, compreenda contas, extratos bancários, depósitos e aplicações financeiras — disse Fachin.

O segundo a votar foi Barroso, que defendeu o combate à corrupção no país.

— Há um processo e uma tentativa de reescrever a História que produz as alianças mais esdrúxulas... E nessa versão que se tenta construir, tudo não teria passado de uma conspiração de policiais federais, procuradores da República e juízes dotados de um punitivismo insano contra gente que conduzia o país com lisura — declarou o ministro.

Um dos principais pontos do voto de Barroso é que o compartilhamento dos dados de órgãos de controle com o MP não representaria, necessariamente, uma quebra de sigilo bancário.

— A receita compartilha os dados com o MP, mas não há quebra de sigilo. Há uma transferência de sigilo e o MP tem o dever de preservar o sigilo — argumentou Barroso.

A ministra Rosa Weber foi a terceira a votar e se alinhou à posição de não impor restrições ao compartilhamento dos dados.

— Não visualizo inconstitucionalidade na previsão de envio pelas autoridades fazendárias de notícia de eventual prática de crime para fins de apuração penal — disse Rosa.

Luiz Fux seguiu a mesma linha dos pares:

— Ainda que se possa extrair da Constituição direito ao sigilo, os direitos fundamentais não são absolutos a ponto de tutelar atos ilícitos. O Coaf só vai mandar dados que revelam operações suspeitas — pontuou Fux.

O QUE ESTÁ EM JOGO NO STF

1 Qual processo está em pauta no julgamento do Supremo?

Trata-se de um recurso de um homem cujos dados da Receita Federal foram usados em uma investigação, sem autorização judicial. Em julho, o presidente do STF, Dias Toffoli, determinou a paralisação de apurações baseadas em dados do órgão e também do antigo Coaf, atual UIF — isso levou à interrupção da investigação de Flávio Bolsonaro.

2 Qual será a principal consequência do julgamento?

Como o recurso tem repercussão geral, a decisão tomada pelo plenário deverá ser aplicada por juízes de todo o país em processos sobre o tema. Os órgãos de controle, cuja utilização de dados está sob análise dos ministros, incluem não só a UIF e a Receita como o Banco Central, a Comissão de Valores Imobiliários e as Secretarias de Fazenda estaduais.

3 Qual será o impacto sobre o caso de Flávio Bolsonaro?

A defesa do parlamentar afirma que ele teve o sigilo bancário quebrado sem um mandado. Se o entendimento do STF desconsiderar a necessidade de autorização judicial para o repasse de dados da UIF, caberá a Gilmar Mendes autorizar a retomada da apuração. Foi o ministro quem determinou a suspensão, obedecendo a liminar de Dias Toffoli.

4 Há outros casos interrompidos, além do que envolve o senador?

O Ministério Público Federal contabiliza 935 investigações paralisadas em todo país pela decisão de Dias Toffoli, que determinou a suspensão dos procedimentos abertos com base em relatórios do antigo Coaf. A maior parte (446 casos) refere-se a crimes contra a ordem tributária. Outros 193 casos são de lavagem de dinheiro.

5 Quais ministros já votaram e quais ainda irão votar?

Proferiram seus votos na semana passada os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Ontem, manifestaram se os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Ainda faltam os posicionamentos da ministra Cármen Lúcia e dos ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello.