O Globo, n. 31524, 28/11/2019. Opinião, p. 2

As barreiras institucionais ao autoritarismo


A referência feita ao AI-5 pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, estava dentro do mesmo contexto em que o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, inaugurou este tipo de declaração. Os dois casos ecoam manifestações violentas na América Latina, e, no de Guedes, exaltações feitas por Lula, depois de sair da prisão, para que exemplos desses atos no continente sejam seguidos no Brasil. Mesmo que saiam da boca de pessoas do círculo de poder em Brasília e de um líder da oposição, e por isso devam ser levadas em conta e rebatidas, não passam de balelas.

Na justa repercussão negativa do descontrole verbal de Guedes — que precisa conter os improvisos sobre assuntos fora de sua área, em que trafega com desenvoltura —, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi ao ponto: “então, se tiver manifestações de rua, agente fecha instituições democráticas ?” Caso haja atos de vandalismo, já ocorridos no Rio e São Paulona esteira das manifestações de meados de 2013, fecha-se o Congresso e cassam se direitos constitucionais como habeas corpus, liberdade de expressão, de reunião, de imprensa?

Não faz sentido, já tendo o país navegado 31 anos consecutivos na institucionalidade democrática, o mais longo período na República. O Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, é de outro tempo, de um país e um mundo diferentes. Mas as ideologias autoritárias — à direita, caso de Bolsonaro, e à esquerda, de Lula — estão aí na disputa por votos, usando o devido espaço que a democracia abre para se fazer política de forma legítima.

A qualquer deslize, os freios e contrapesos da democracia representativa são acionados. Na maior democracia do mundo, é visível que Donald Trump, líder de uma extrema direita do Partido Republicano, não se sente bem dentro de um figurino democrático. Procura rompê-lo — na busca de verbas para construir o muro na fronteira do México, na tentativa de intervenção em organismos independentes, por exemplo —, e o sistema democrático o enquadra. Agora, enfrenta um processo de impeachment, acusado de pressionar um governo estrangeiro a ajudá-lo na campanha política à reeleição. É assim que deve funcionar, sem crises institucionais.

Também no Brasil os pendores e instintos antidemocráticos do presidente são escancarados. Tenta legislar por decretos, defende políticas de força desmedida a serem executadas pelo Estado, procura revogar leis numa penada. E as instituições — Congresso, Judiciário, Ministério Público —reagem no script da lei.

A democracia dá amplo espaço à sociedade, mas cobra responsabilidades. Tem sido assim desde a redemocratização, há 31 anos. Sem maiores abalos, dois presidentes foram afastados do Planalto por impeachment. Os vices assumiram, e a vida seguiu. O Judiciário e o MP desbarataram um sistema de corrupção enraizado desde o Executivo ao Congresso, mandando para a prisão muitas autoridades dos dois poderes, entre eles, Lula. Grupos reagem a este avanço no enfrentamento à corrupção, mas novamente os debates, as idas e vindas, ocorrem dentro dos marcos das instituições.

Mesmo que não se possam transpor para o Brasil realidades muito específicas de Chile, Bolívia, Colômbia e outros, não se deve desconhecer a situação do país e o risco de manipulações populistas. Para lidar com este quadro, existem as instituições, a serem sempre defendidas com vigor. Instrumentos legais para isso existem.