O Globo, n. 31544, 18/12/2019. Economia, p. 23

Argentina: impostos e congelamento
Janaína Figueiredo
Daniel Gullino
Leandro Prazeres


O novo governo argentino anunciou ontem um pacote econômico para tentar enfrentar a crise, com medidas que vão do congelamento de tarifas de água e luz a um imposto de 30% sobre compras em dólar. O ministro da Economia, Martín Guzmán, apresentou o chamado projeto de lei de Solidariedade Social e Reativação Produtiva, mas não falou em renegociação da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Na visão de analistas, em meio à recessão — este ano, a economia deve encolher entre 2,5% e 3%— e à fuga de dólares, o governo não tinha muitas alternativas e fez um pacote possível, ao aumentar tributos a setores que ainda têm certa capacidade de pagamento: os exportadores agrícolas e as classe média e alta.

— É o primeiro passo para resolver acrise econômica e social — disse Guzmán.

Na visão de Fausto Spotorno, economista-chefe da consultoria Orlando Ferreres e Associados, o pacote reflete a situação de um governo que precisa de recursos, mas não quer emitir moeda por causa da inflação, que este ano deve superar 50%.

— As necessidades fiscais são enormes, o governo precisa baixar o déficit, os juros e pagar dívida. Não havia outra saída — disse, acrescentando avaliar que o projeto mostrou seriedade em termos fiscais.

O projeto prevê a intervenção em órgãos reguladores de energia e gás, a fim de revisar as tarifas. Estas ficarão congeladas por seis meses, enquanto o governo abre um processo de revisão das taxas. O objetivo é “reduzir a carga tarifária real sobre lares e empresas já em 2020”.

Além disso, o governo acertou com laboratórios uma redução de 8% nos preços dos medicamentos, que ficarão congelados até 31 de janeiro.

E aposentados que recebem o valor mínimo do benefício receberão um bônus, em duas parcelas de 5 mil pesos, até que se estabeleça uma nova fórmula de reajuste.

O aumento dos impostos sobre as exportações de grãos já havia sido veiculado no fim de semana. A medida deve ter reflexos no Brasil, que importa o trigo argentino, com a alta dos preços de pães e massas. Segundo o presidente do Sindicato da Indústria do Trigo no Paraná, Daniel Kummel, os preços podem subir já em janeiro:

— À medida que forem feitas novas compras, haverá impacto para produtos como pãozinho, massas, biscoitos.

Uma surpresa foi a abrangência da taxação das compras em dólar. O imposto de 30% valerá não apenas para despesas no exterior — como passagens aéreas e reservas de hotéis —, como haviam dito representantes do governo no fim de semana, mas também sobre as compras de dólar na Argentina, incluindo o limite de US$ 200 mensais. A medida valerá por cinco anos, segundo o jornal La Nación.

Com os recursos desse tributo, o governo pretende financiara seguridade social e obras públicas.

Necessidade de US$ 21 bi

Para Martin Tetaz, professor da Universidade Nacional de La Plata, o pacote tem dois objetivos centrais: equilibrar as contas criando novos tributos e aumentando outros, e fazer com que os argentinos gastem menos no exterior.

— O FMI quera recuperação das contas públicas, e nesse aspecto o pacote atende às demandas do organismo. O que não sabemos ainda é quais serão as condições de renegociação da dívida pública — disse Tetaz.

Na segunda-feira, o presidente Alberto Fernandéz lembrou nas redes sociais que há 14 anos, quando era chefe de gabinete de Néstor Kirchner (2003-2007), participou de um momento histórico: a quitação da dívida do país com o FMI, na época de US$ 9,8 bilhões. E assegurou: “Vamos nos levantar outra vez”.

Fernández, porém, não disse que a situação hoje é totalmente diferente. Os mercados financeiros estão fechados, e a dívida com o FMI supera os US$ 45 bilhões. Seu antecessor, Mauricio Macri, obteve em 2018 um crédito de US$ 57 bilhões que Fernándezs us pendeu ejá disseque rer renegociar. Será, dizem analistas, uma negociação complexa. Se não houver acordo, o país será arrastado a um calote, cenário no qual qualquer plano econômico se torna inviável.

As necessidades de financiamento de 2020 chegam a US$ 21 bilhões, e o pacote de ontem prevê a emissão de um bônus de US$ 4,5 bilhões para saldar vencimentos do primeiro trimestre. As reservas líquidas do Banco Central, segundo economistas, não chegam a US$ 10 bilhões.

— Não é um pacote para reativara produção. Oque o governo está fazendo é tentar conter a saída de dólares e gerar recursos — disse Eduardo Crespo, professor de Economia Política Internacional da UFRJ.

O projeto já foi enviado ao Congresso para votação.

Conheça os principais pontos do projeto

1 Tabelamento de preços

O governo poderá intervir nos órgãos reguladores de luz e gás para revisar as tarifas, que ficarão congeladas por 180 dias. Já os preços de medicamentos serão reduzidos em 8%.

2 Exportações agrícolas

As vendas ao exterior de grãos, como trigo e milho, serão taxadas em 15%. A tarifa para a soja será de 33%. Carnes, leite em pó, farinhas e arroz, por sua vez, serão taxados em 9%.

3 Compras em dólar

A compra de produtos e serviços em dólar, no país e no exterior, estará sujeita a imposto de 30%. Isso inclui passagens aéreas, reservas de hotéis e assinatura de Spotify e Netflix.

4 Demissões

O governo dobrou o valor da indenização para demissões sem justa causa. Essa medida vai vigorar por 180 dias e visa conter o aumento do desemprego na Argentina.

5 Patrimônio

O imposto que incide sobre patrimônio (exceto moradia) também será elevado. A alíquota mínima, hoje de 0,25%, passaria a 0,50%, e assim por diante, até chegar a 1,25%.

6 Aposentadorias

Haverá uma nova fórmula de reajuste. Até esta ser anunciada, aposentados e pensionistas que ganham o valor mínimo do benefício terão um bônus, em duas parcelas de 5 mil pesos.

Bolsonaro insinua que medidas podem levar à imigração de argentinos

O presidente Jair Bolsonaro citou ontem, em uma rede social, as medidas tomadas pelo novo governo da Argentina e insinuou que elas poderão levar à imigração de argentinos para a Região Sul do Brasil, assim como ocorreu com venezuelanos em Roraima. Essa imigração, segundo ele, causaria problemas como o aumento da violência e a piora em saúde e educação.

Das medidas anunciadas pelo presidente argentino, Alberto Fernández, Bolsonaro destacou o aumento da indenização por demissão sem justa casa, a elevação das tarifas sobre as exportações agrícolas, o imposto de 30% sobre compras do exterior e “a volta da discussão da legalização do aborto”.

Ao deixar o Palácio da Alvorada, no fim da manhã, Bolsonaro foi perguntado sobre a declaração, mas não quis comentar:

— Interpretação de texto. Primeira aula na faculdade.

Não foi a primeira vez que Bolsonaro relacionou a Argentina à Venezuela. Em agosto, após Fernández vencer as eleições primárias, o presidente brasileiro afirmou que se a “esquerdalha” voltasse ao poder na Argentina, o Rio Grande do Sul poderia virar “um novo estado de Roraima”, com "irmãos argentinos fugindo pra cá".

Já a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse estar preocupada com um possível aumento no preço do pão no Brasil, em decorrência ao aumento do imposto sobre as exportações agrícolas argentinas. Estima-se que mais de 80% de todo o trigo importado pelo Brasil venham do país vizinho.