O Globo, n. 31544, 18/12/2019. Mundo, p. 27

É guerra

Filipe Barini


A Câmara dos Deputados dos EUA se reunirá hoje em Washington para uma das sessões mais importantes dos 243 anos da História do país. Os 431 deputados — 233 democratas, 197 republicanos e um independente — decidirão se apoiam ou não as duas acusações apresentadas pela Comissão de Justiça da Casa para a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Donald John Trump: por abuso de poder e obstrução do Congresso. Elas são relacionadas às denúncias de que Trump teria pressionado o governo da Ucrânia a fazer uma investigação contra o ex-vice-presidente Joe Biden, seu potencial rival nas eleições de 2020.

Se o processo for aberto com o voto da maioria simples dos deputados, como é esperado, será apenas a terceira vez em que um presidente dos Estados Unidos é julgado pelo Senado.

Mobilizando a base

Trump conta com a maioria republicana no Senado para mantê-lo no cargo e tem apostado que o processo servirá para mobilizar sua base na eleição presidencial. Ontem, ele divulgou uma carta à presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, na qual nega os crimes e diz ser vítima de um “abuso de poder” dos democratas, aos quais acusa de não aceitar a derrota nas eleições de 2016.

“Vocês (democratas) são os que estão interferindo nas eleições. Os que subvertem a democracia americana. Os que obstruem a Justiça. Os que trazem dores ofrimentoàn ossa República para seus próprios ganhos egoístas pessoais, políticos e partidários”, afirmou Trump na carta, acrescentando que os deputados promovem uma “tentativa de golpe”. “Um processo mais justo foi garantido às bruxas de Salem”, completou, referindo-se ao episódio no século XVII em que mais de 200 pessoas foram acusadas de bruxaria no estado de Massachusetts.

Apalavra“impeachment” esteve presente nos corredores do Congresso desde aposse de Trump, em 2017. Primeiro, por causa das denúncias sobre a interferência russa nas eleições de 2016, que levaram a uma ampla investigação conduzida por um promotor especial, RobertM uel ler. Embora tenha mandado aliados do presidente para a cadeia, Mueller não concluiu que houve conluio entre ele e Moscou.

A situação mudou em setembro deste ano. Um denunciante ligado à comunidade de inteligência relatou a superiores sua preocupação com uma conversa de Trump com o colega ucraniano, VolodymyrZelensky.Ali,Trump pediu a investigação contra Biden, focada na participação do filho dele, Hunter, na direção de uma empresa de energia do país. Nancy Pelosi decidiu então abrir o inquérito que levou à votação de hoje, classificado por ela como “uma das atribuições mais solenes que a Constituição” confere ao Legislativo.

As audiências, inicialmente a portas fechadas, serviram para assessores, diplomatas e funcionários da Casa Branca darem os contornos à narrativa, mostrando a pressão do governo americano pela investigação contra Biden, em uma “diplomacia das sombras”, como definiu George Kent, um dos diplomatas mais influentes na formulação de políticas para o Leste Europeu.

Impacto eleitoral

Ao fim dos depoimentos, já com transmissão ao vivo e direito a ataques em tempo real de Trump via Twitter, a Comissão de Inteligência, comandada pelos democratas, elaborou um relatório de 300 páginas detalhando o caso e traçando conclusões: o presidente abusou do cargo para benefício próprio ao pedir a investigação contra Biden a um governo estrangeiro. O passo seguinte ocorreu na Comissão de Justiça, responsável por determinar quais seriam as acusações.

Trump bateu na ocasião seu recorde de postagens no Twitter — 123 em um dia. Ele nega todas as acusações, dizendo que manteve uma conversa “normal” com o presidente Zelensky.

Trump já espera uma derrota no plenário da Câmara, onde os democratas têm maioria desde as eleições legislativas de 2018. Para os deputados da oposição, porém, a decisão de votar pela continuidade da ação não é tão simples. Das 41 novas cadeiras conquistadas pelos democratas no ano passado, 31 eram em distritos onde o presidente venceu em 2016 e ainda tem considerável apoio. Estes legisladores, em especial, temem o impacto do processo de impeachment nas urnas no ano que vem.

Ao longo do inquérito, a taxa de aprovação de Trump, hoje em 43% — um recorde para ele—subiu entre os republicanos. O apoio ao impeachment, de em média 47%, reflete a divisão política do país: o afastamento é apoiado por 83% dos democratas e por apenas 9% dos republicanos.

Apesar disso, até ontem apenas um deputado democrata foi abertamente contra a abertura do processo: o estreante Jeff Van Drew. A deputada Elissa Slotkin, do Michigan, disse ter noção de que seu voto pode marcar o fim de sua carreira política, mas mesmo assim votará a favor do impeachment. Joe Cunningham, da Carolina do Sul, disse que,“se quisesse tomar decisões politicamente fáceis, simplesmente votaria ‘não’ e seguiria com avida ”.

Trump aposta suas fichas na esperada absolvição no Senado, onde os republicanos controlam 53 dos 100 assentos. Ele espera, inclusive, que seus aliados chamem Joe Biden para depor. Diferentemente do que ocorreu no processo contra o democrata Bill Clinton em 1998 e 1999, quando vários opositores votar ampara absolver o presidente, no ambiente ultra polarizado de hoje não estão previstas dissidências no campo republicano.

As acusações

> Abuso de poder: Trump teria abusado do cargo que ocupa ao reter US$ 391 milhões em ajuda para pressionar a Ucrânia a realizar investigações que o beneficiariam politicamente — no caso, sobre a atuação de um filho do ex-vice-presidente Joe Biden, Hunter, no setor de gás ucraniano. O abuso de poder constituiria um “alto crime”, uma das razões previstas na Constituição dos EUA para o impeachment (as outras são traição e suborno).

> Obstrução do Congresso: Trump teria intencionalmente tentado bloquear o inquérito da Câmara sobre suas transações com a Ucrânia ao se negar a fornecer documentos e instruir funcionários a não colaborar.

Os precedentes

> Andrew Johnson: Foi alvo de 11 acusações após a demissão do secretário de Guerra, em 1868. Considerado culpado na Câmara, no Senado acabou se salvando por apenas um voto.

> Richard Nixon: Em meio ao caso Watergate, renunciou em 1974 após acusações de obstrução de Justiça, abuso de poder e desrespeito ao Congresso. Pressentia um massacre na Câmara e saiu antes.

> Bill Clinton: Foi acusado de obstrução de Justiça e de mentir no caso Monica Lewinsky, em 1998. No Senado, a oposição republicana ficou a 17 votos de afastá-lo.

O julgamento no Senado

> Regras abertas: A Constituição americana estipula que a competência de julgar um impeachment é do Senado. As regras, contudo, são bastante abertas.

> Três regras básicas: Há, apenas, três normas básicas: os senadores devem jurar imparcialidade; o presidente da sessão deve ser o presidente da Suprema Corte; e a condenação exige um quórum de dois terços dos membros presentes.

> Deputados na acusação: Por tradição vinda da Inglaterra, membros da Câmara funcionam como promotores no julgamento. Eles recebem o título de “gerentes do impeachment”.

> Liberdade de ação: De resto, o Senado tem autoridade constitucional para criar as próprias normas.

> Testemunhas incertas: Isso significa, por exemplo, que podem definir se aceitarão ou não testemunhas. Em tese, é possível que aceitem testemunhas de só uma das partes, ou então de nenhuma.

> Provas incertas: Os senadores também podem decidir aceitar provas não convencionais, como boatos. Também podem julgar sem que haja provas.