O Globo, n. 31525, 29/11/2019. País, p. 4

De volta às investigações
André de Souza
Leandro Prazeres


A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votou ontem para liberar o compartilhamento de dados de órgãos de controle com o Ministério Público (MP) e a polícia, mesmo quando não houver decisão judicial prévia. Ao fim da sessão, o presidente da Corte, Dias Toffoli, também revogou a decisão liminar dada em julho de 2019 que paralisou inquéritos e processos baseados em informações detalhadas repassadas pela Receita Federal e pelo antigo Coaf, hoje rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira (UIF).

Assim, o STF abre caminho para a retomada dos processos contra o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro. Pela decisão de julho de Toffoli, apenas dados globais, sem muito detalhamento, poderiam ser repassados sem decisão judicial. Apesar de todos os ministros já terem votado, o alcance e os limites exatos da decisão — a chamada tese —serão definidos em uma nova sessão, na próxima quarta-feira. Isso ocorre porque o caso tem repercussão geral e servirá de jurisprudência para casos futuros. Ao menos 935 processos ou inquéritos conduzidos pelo Ministério Público Federal (MPF) foram paralisados por causa da liminar de Toffoli, de acordo com levantamento feito pelo órgão.

Embora ainda faltem detalhes da decisão, a maioria dos ministros é favorável a um amplo compartilhamento de dados tanto da Receita como do Coaf, sem restrições significativas. Entre as obrigações que deverão ser seguidas é a necessidade de o MP preservar o sigilo das informações que receber. Dos 11 ministros, nove não restringiram o compartilhamento por parte da Receita. Eles também entenderam que a UIF, o antigo Coaf, pode repassar os relatórios de inteligência financeira (RIFs) sem prévia autorização do Judiciário, mesmo contendo informações detalhadas sobre a movimentação financeira.

TOFFOLI MUDA

Apesar de, na semana passada, ter imposto uma série de restrições ao compartilhamento de informações, Toffoli mudou de posição após a maioria se formar no tribunal pela liberação. O ministro aderiu à tese de Alexandre de Moraes tanto no julgamento do caso concreto — a investigação conduzida no interior de São Paulo que levou o tema a ser debatido no STF — quanto na discussão do tema como um todo, de acordo com a sua assessoria.

O presidente da Corte manteve, entretanto, ressalvas à atuação do MP, assim como Gilmar Mendes. Os outros ministros não chegaram a abordar o tema, o que pode vir a ocorrer durante a discussão da tese. Dessa forma, eventuais restrições — que poderão ter impacto em casos específicos, como o de Flávio — ainda poderão ser tema de debate no STF.

Alguns ministros — mesmo entre os que se manifestaram pela legalidade do compartilhamento de dados do antigo Coaf — disseram ser contra discutir a situação do órgão no julgamento. Isso porque o processo dizia respeito inicialmente apenas à Receita. O Coaf foi incluído graças à decisão de Toffoli em resposta ao pedido de Flávio Bolsonaro. No fim da sessão, o presidente do STF entendeu que os ministros que queriam excluir o órgão do julgamento ficaram vencidos. Assim, a Corte vai deliberar sobre esse ponto durante a votação da tese. Na prática, caso o Coaf fosse excluído, isso também significaria a retomada de investigações baseadas em dados repassados pelo órgão.

Ontem, na quinta sessão do julgamento, que começou na quarta-feira passada, a ministra Cármen Lúcia foi a primeira votar. Ele se alinhou à posição dos colegas Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber, que já tinham se manifestado pelo compartilhamento sem restrições de dados da Receita e do antigo Coaf.

— É dever do agente público, ao se deparar com fatos criminosos, comunicar o Ministério Público como determina a lei. Não constitui violação ao dever do sigilo a comunicação de quaisquer prática de ilícitos — disse Cármen Lúcia. — Sem acesso permitido ao Estado às fontes financeiras, especificamente encaminhadas ao MP, órgão próprio para a formação da sua opinião sobre existência ou não do crime e encaminhamento ao Poder Judiciário, o combate a todas as formas, das mais simples às mais sofisticadas, de práticas criminosas, aí incluídas as poderosas organizações que atuam para fora das fronteiras nacionais, seria ineficaz.

Assim como Cármen, o ministro Ricardo Lewandowski votou de forma favorável ao repasse de informações da Receita ao Ministério Público, mas não se manifestou sobre a possibilidade ou não de compartilhamento de dados entre a UIF e o MP.

— Aqui não se cogita de compartilhamento indiscriminado ou aleatório de bancos de dados bancários e fiscais entre a receita e o MP. Mas tão somente de transferência ou repasse daquela repartição para este órgão de provas relativas a sonegação fiscal de contribuintes para o efeito de promoção de sua responsabilidade penal. Não se está, portanto, diante de prova obtida ilegalmente ou de quebra de sigilo bancário ou fiscal da Receita — disse Lewandowski.

RESTRIÇÕES

Gilmar Mendes, ao votar sobre o repasse de dados da UIF, se alinhou à posição inicial de Toffoli, que tinha feito uma ressalva: se por um lado a UIF pode compartilhar seus dados, o MP só pode pedir relatórios a esse órgão em casos de cidadãos contra os quais já haja uma investigação criminal ou um alerta emitido por unidade de inteligência. Já em relação à Receita, Gilmar foi na corrente majoritária favorável ao compartilhamento amplo dos dados. Para ele, o órgão pode repassar cópias de declaração de imposto de renda, a fim de embasar investigações criminais.

— Divirjo da proposta apresentada por Vossa Excelência (Toffoli) para não estabelecer a impossibilidade de compartilhamento no âmbito restrito da representação fiscal para fins penais de documentos como declarações de imposto de renda ou extrato bancários. Ressalto no entanto que tais documentos só poderão ser objeto de compartilhamento na medida em que forem estritamente necessários para compor indícios de materialidade nas infrações apuradas —disse Gilmar.

Últimos a votar, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello adotaram uma posição mais restritiva que a inicial de Toffoli quanto ao compartilhamento de dados pela Receita. Para eles, é preciso sempre decisão judicial. Marco Aurélio ironizou o fato de o Ministério Público não poder quebrar o sigilo, mas a Receita, na sua avaliação, ter autorização para fazer isso.

—Surge uma ironia. A Receita, parte na relação tributária, pode quebrar o sigilo de dados bancários, mas o Ministério Público não pode. Daí o surgimento desse vocábulo que passou a ser polivalente, que é o vocábulo “compartilhamento” — disse Marco Aurélio.

COMO VOTOU CADA MINISTRO DO STF

9 sem restrições

Em defesa do amplo compartilhamento de informações sem necessidade de decisão prévia da Justiça

2 com restrições

O compartilhamento de informações só pode ocorrer por determinação judicial

Luís Roberto Barroso

• UIF: Os relatórios podem ser enviados ao MP sem necessidade de supervisão judicial. •Receita: Não só o órgão, mas também o BC e a CVM podem compartilhar dados comoMP.

Cármen Lúcia

• UIF: Os relatórios podem ser enviados ao MP sem necessidade de supervisão judicial. •Receita:

É constitucional que o órgão receba, acesse e repasse dados fiscais ao MP.

Alexandre de Moraes

• UIF: Os relatórios podem ser enviados ao MP sem necessidade de supervisão judicial. •Receita: É permitido o compartilhamento da íntegra de dados coletados em processos administrativos.

Rosa Weber

• UIF: Os relatórios podem ser enviados ao MP sem necessidade de supervisão judicial. •Receita: É permitido o compartilhamento da íntegra de dados coletados em processos administrativos.

Ricardo Lewandowski

• UIF: Não se manifestou sobre a possibilidade ou não de compartilhamento de dados com o MP. •Receita: É permitido que o órgão repasse informações ao MP relativas à sonegação fiscal de contribuintes.

Edson Fachin

• UIF: Além de receber os relatórios, o MP pode solicitar dados ao órgão de pessoas que ainda não são investigadas.

• Receita: É permitido o compartilhamento da íntegra de dados coletados em processos administrativos.

Luiz Fux

• UIF: Os relatórios podem ser enviados ao MP sem necessidade de supervisão judicial. •Receita: É permitido o compartilhamento da íntegra de dados coletados em processos administrativos.

Gilmar Mendes

• UIF: O MP só pode pedir relatórios ao órgão em casos de cidadãos contra os quais já haja investigação criminal ou alerta emitido por unidade de inteligência.

• Receita: É permitido o compartilhamento de dados detalhados com o MP.

Marco Aurélio Mello

• UIF: Não se manifestou sobre a possibilidade ou não de compartilhamento de dados com o MP.

• Receita: O órgão só pode enviar dados fiscais ao MP por decisão da Justiça.

Celso de Mello

• UIF: Relatórios podem ser compartilhados com os órgãos de investigação criminal. •Receita: O órgão só pode enviar dados fiscais ao MP por decisão da Justiça.

Dias Toffoli

• UIF: Os relatórios do órgão preservam o sigilo financeiro e não necessitam de autorização judicial.

• Receita: Após votar pela imposição de restrições, o ministro mudou de opinião e liberou o compartilhamento dos dados.