O Estado de S. Paulo, n. 46919, 03/04/2022. Espaço Aberto, p. A6

A colisão da ciência com a civilização do espetáculo

Claudio de Moura Castro


Faz tempo, fui presenteado com o livrinho de Vargas Llosa A civilização do espetáculo. Dei uma lida superficial. Também me familiarizei com uma maquininha diabólica chamada Eye Tracker, que registra no computador os movimentos das pupilas. Com ela, ficamos sabendo onde a pupila está focalizando. Parece bobice, mas abre as portas para descobertas fascinantes.

Essas duas lembranças atropelaram a minha cabeça, simultaneamente, quando participei de um evento que discutia ciência e suas aplicações. Havia conferências em um auditório, algumas demonstrações em salinhas e muita tralha exposta. Tudo muito sério.

Contudo, levei um susto coma montagem feérica. Em labirintos de salas e corredores, logo à entrada, painéis de LED desenhavam nas paredes e no solo arabescos, ao som de música moderninha e ensurdecedora. Pisávamos nas figuras que se movimentavam no chão. Era aversão eletrônico psicodélica de um“barato” de LSD ou Ecstasy. Sendo algo que amortece as funções cognitivas, não era um bom agouro para um evento científico.

Antes de prosseguir, falemos do Eye Tracker. Como se sabe, a pupila obedece a dois senhores. Voluntariamente, podemos instruí-la a olhar para a conta do restaurante. Mas, no seu funcionamento cotidiano, move-se por instruções que nosso cérebro definiu, quando nem éramos ainda Homo sapiens. Quem sabe, primos das iguanas? O Eye Tracker revela coisas interessantíssimas, mas aqui ficamos com um único achado, de resto, muito simples.

Como iguanas, já tínhamos uma visão que prestava inestimáveis serviços. Porém os donos das pupilas mais alertas para o movimento eram devorados por feras com menos frequência. Afinal, se mexe, pode ter dentes afiados. Como resultado desta seleção natural, sobreviveram aqueles cuja pupila acompanha o movimento. E, como confirma o Eye Tracker, nossas pupilas foram programadas para acompanhar tudo o que se move, onde quer que esteja. E onde está a pupila está a atenção. É uma forma antiga de seguro de vida.

Quando me sentei no auditório, dei-me conta do árduo trabalho que tinha pela frente, porque tinha o tempo todo de livrar-me da atenção ao que se movia. Vale, também, mencionar que nada de velharias, como programação impressa.

Apenas em um site, a ser encontrado no celular.

Naquele local se truncavam dois mundos. Minha pupila queria embarcar na festa da motilidade. Eu, nos contornos dos argumentos apresentados.

A iluminação que recebiam os conferencistas era pálida e de cima, deixando ver olheiras e a sombra do nariz – a parecer o bigodinho de Hitler. Porém, na tela de fundo, gigantesca e bem iluminada, passeavam nuvens e estrelas, em perpétuo movimento. Numa barra, bem à altura dos conferencistas, escorria uma projeção com o nome dos muitos patrocinadores. E os raios laser trocavam de cores ao varar o espaço do auditório.

Quase não se via a cara do conferencista. Para compensar, ela se materializava num gigantesco telão. Porém o PowerPoint distava dele pelo menos uns 20 metros. Havia que escolher: o conferencista ou seu PowerPoint. Os dois, só levando binóculo.

Como acontece nestes eventos, as conversas e exibições são até mais cativantes, provocando inúmeras trocas de ideias no hall central. Sendo assim, faltava uma porta para impedir que o som dos mil diálogos competisse com a voz do conferencista, por vezes, com volume insuficiente.

Em vários cantinhos havia também apresentações simultâneas. Mas, embora cada conferencista pudesse estar a um metro da sua audiência, sem microfone e fones nada se podia ouvir.

Pensei no livrinho de Vargas Llosa. A ficha caiu! O fulgurante jogo de luzes atropelou o que deveria ser uma serena discussão de ideias. Estávamos na civilização do espetáculo. O evento científico colidiu com a demonstração visual. Quem tentava acompanhar as falas encontrava uma inimiga na liturgia colorida. As pupilas eram assaltadas pelos raios laser vermelhos, que viravam verdes. As estrelas e nuvens tentavam ganhar a atenção das pupilas. O mesmo com a procissão dos ícones. As ideias poderosas, trazidas pelos conferencistas, eram soterradas pelo movimento e pelo espetáculo montado.

Houve uma colisão de dois mundos, no fundo dois universos contraditórios. Os organizadores queriam trazer os avanços da pesquisa para seus convidados. Mas quem montou o evento estava totalmente mergulhado na “civilização do espetáculo”, ajudado pela música, berrando nos intervalos. Houve “a metamorfose daquilo que se entendia por cultura”. Onde caberia a palavra falada, lembrada e escrita, como nos pergunta George Steiner? Não cabia, pois primeiro vinham as imagens, obliterando as ideias. A palavra se subordinava à imagem. Para a minha consternação, venceu o espetáculo. Citando Vargas Llosa, vivíamos “a ideia temerária de converter em bem supremo nossa natural propensão a nos divertirmos”