Correio Braziliense, n.20569, 16/09/2019. Mundo. p.12

Guerra e paz se enfrentam na urna
Silvio Queiroz


Benjamin Netanyahu acaba de se tornar o primeiro-ministro que governou Israel por mais tempo, superando o patriarca David Ben Gurion, e volta a enfrentar as urnas amanhã, em disputa acirrada entre seu partido, o direitista Likud, e a legenda de centro-esquerda Kahol Lavan (“azul e branco”, as cores da bandeira israelense). Passados pouco mais de seis meses desde a eleição de abril, que não permitiu a formação de uma maioria parlamentar, o país volta a se debruçar sobre alguns de seus impasses cruciais (Leia o quadro). Entre eles, se destaca o futuro das relações com os palestinos, questão dominante nos 13 anos (entre 1996 e 1999, primeiro, e desde 2009, no atual período) sob o comando de “Bibi”, como é chamado.

A uma semana do pleito, o premiê pediu aos eleitores “um mandato forte” para dar o passo que pode enterrar definitivamente o processo de paz iniciado em 1993, com os Acordos de Oslo — missão à qual destinou boa parte de seus esforços. Netanyahu anunciou que, caso reeleito e com a maioria necessária, anexará formalmente o Vale do Jordão e a margem norte do Mar Morto, uma área que representa cerca de um terço do território da Cisjordânia, sob governo autônomo da Autoridade Palestina (AP). A reação inicial do mundo árabe indica que a iniciativa tende a provocar mais um solavanco no Oriente Médio, em meio à prolongada guerra civil na Síria e às tensões múltiplas envolvendo Israel, Arábia Saudita e o inimigo comum: o Irã.

“Bibi” afirma ter o apoio do amigo Donald Trump, que formalizou o reconhecimento da controversa anexação de Jerusalém Oriental, na contramão da comunidade internacional, com a transferência da Embaixada dos Estados Unidos para a cidade. O presidente e o secretário de Estado Mike Pompeo evitaram comentar o anúncio do aliado, mas acompanham com atenção máxima o desfecho da eleição de amanhã. Jared Kushner, o genro que Trump transformou em assessor especial e emissário para as questões do Oriente Médio, aguarda os resultados para confirmar a apresentação de um ambicioso plano de paz para a região.

O cientista político Timothy Hagle, professor da Universidade de Iowa, lembra que a colonização judaica na Cisjordânia, cerne do impasse no processo de paz, é motivo de controvérsia também nos EUA, mas admite que a relação pessoal entre o presidente e o premiê é um fator de peso. “Netanyahu pode ganhar alguma liberdade para ir em frente com os planos”, arrisca. O colega Robert Shapiro, da Universidade de Columbia, compartilha a avaliação e não vê a perspectiva de ajustes na política externa de Washington: “Não enquanto Trump for o presidente, pois ele tem apoiado Netanyahu decididamente”.

Nenhum dos dois analistas acredita que a saída do conselheiro da Casa Branca para assuntos de Segurança Nacional, John Bolton, considerado um linha-dura, possa ter algum impacto nas relações com o Oriente Médio. “Trump assumiu o comando disso, talvez com alguma participação da família. Não busca conselhos de Bolton nem de ninguém”, disse Shapiro ao Correio. “O presidente gosta de ver a si mesmo como um bom negociador de acordos”, observa Hagle. “E, não importe o que cada um pense sobre isso, é fato que ele se mostra disposto a conversar com líderes que outros políticos não procurariam.”

Incerteza

Assim como Washington, as capitais da Europa e do Oriente Médio aguardam com alguma ansiedade o resultado oficial das urnas, com risco ponderável de o impasse de abril se prolongar. Projeções baseadas nas últimas pesquisas de opinião indicam um empate entre o Likud, de Netanyahu, e o Kahol Lavan, liderado pelo general Benny Gantz, ex-comandante das Forças de Defesa de Israel. Cada um teria 32 das 120 cadeiras da Knesset (parlamento), um cenário que retrata a crescente fragmentação política. Considerando as possíveis alianças, Gantz poderia articular um bloco de centro-esquerda com 53 deputados (abaixo dos 61 que formam a maioria), incluindo os eleitos pelos árabes-israelenses. “Bibi” chegaria a 58, mas, para isso, teria de incluir partidos judaicos ultra-ortodoxos e a extrema-direita.

Por ironia, o fiel da balança pode ser o mesmo responsável pela convocação da eleição. Avigdor Lieberman, ex-ministro da Defesa, ultranacionalista e porta-voz dos imigrantes russos e de uma parcela dos colonos da Cisjordânia, rompeu a coalizão com Netanyahu em uma disputa por espaço com os partidos religiosos. Seu partido, o Yisrael Beiteinu, aparece com chance de eleger oito parlamentares — o suficiente, e indispensável, para romper o impasse na Knesset. “Eu não entrarei em um governo com fanáticos ultraortodoxos”, afirmou em discurso para apoiadores que compartilham a rejeição a imposições dos partidos religiosos, como a suspensão do transporte público aos sábados, para observação do shabat. “Eu não tenho nada contra eles, mas sou contra eles controlarem a minha vida.”

Colônia é legalizada

Em uma reunião excepcional do conselho de ministros, o governo israelense autorizou, ontem, a legalização da colônia Mevoot Jericó, na Cisjordânia Ocupada. A colônia fica perto de Jericó, a principal cidade palestina do Vale do Jordão e coração da indústria agrícola, ao norte do Mar Morto. Segundo Netanyahu, o vale é “um muro de defesa que será parte integrante de Israel (..) e que vai assegurar a presença eterna das nossas Forças Armadas”. A Autoridade Palestina condenou a realização da reunião, a dois dias das eleições, e, sem mencionar a colônia diretamente, pediu à comunidade internacional que faça pressão sobre Israel, um governo que “mina todos os fundamentos do processo político (de paz)”. Para a ONG israelense Peace Now, “o governo segue dando provas de seu desprezo pela solução com dois Estados”.

Desafios em série

Questões internas e externas aguardam o próximo governo

Palestina

Com o respaldo do governo Trump, Netanyahu tirou na prática do cenário a chamada “solução de dois Estados”, que prevê uma Palestina soberana lado a lado com Israel. Com o avanço progressivo da direita religiosa ultranacionalista na Knesset, a perspectiva de uma saída negociada parece a cada dia mais distante.

Irã

A retirada dos EUA do acordo multilateral sobre o programa nuclear iraniano reforça os receios de que o regime islâmico de Teerã reinicie a marcha para obter armas atômicas. Impedi-lo de alcançar o objetivo é um dos poucos consensos políticos em Israel, mas sobram divergências sobre como fazê-lo. Netanyahu mantém inabalável a ameaça de um ataque militar preventivo.

Síria/Líbano

Nos dois países vizinhos, o Estado judeu confronta-se com a influência estendida do Irã na região, especialmente entre os muçulmanos xiitas e as forças antiamericanas. Neste mês, as forças militares israelenses travaram escaramuças com o movimento libanês Hezbollah, apoiado por Teerã.

Estado religioso

A definição constitucional de Israel como Estado judaico acirra as divisões na sociedade sobre a relação entre o espaço civil e as normas religiosas — objeto de disputas entre diferentes escolas teológicas. A aliança com Netanyahu fortaleceu, nos últimos anos, as correntes ultraortodoxas, que buscam impor normas rejeitadas por outros setores.

Público x privado

Paralelamente às tensões externas, o país viveu, nas últimas décadas, um processo de reequilíbrio entre a economia estatal e o setor privado. A herança algo socialista do sionismo do século 20, que teve sua expressão nos primeiros governos do Partido Trabalhista, passa por profunda e acelerada revisão. Na atual composição de forças políticas, ganham terreno as posições pró-mercado.