Correio Braziliense, n. 20645, 01/12/2019. Cidades, p. 17

Falta fiscalização das leis para mulheres
Darcianne Diogo
Jéssica Eufrásio


A distância entre o previsto na lei e a prática nem sempre é curta. No caso das mulheres, a existência de dispositivos voltados à garantia dos direitos delas não impedem que violações ocorram. Com base nisso, o Ministério Público de Contas do Distrito Federal (MPC-DF) elaborou uma representação para pedir atenção ao assunto. O documento, ao qual o Correio teve acesso com exclusividade, apresenta 82 normas distritais sancionadas no DF. Entre as consideradas constitucionais, há aquelas sem efetividade — parcial ou integral — e sem decretos que as regulamentem.

O documento elenca as principais leis voltadas às mulheres nas áreas de segurança pública, saúde, educação e trabalho. A representação oferece sugestões ao Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF), a fim de que seja feita uma auditoria operacional baseada no tema, incluindo oitivas a entes dos três poderes, como a Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) e a Procuradoria-Geral do DF.

O MPC levanta quatro questionamentos para guiar a análise (leia Indagações) e sugere que os trabalhos analisem as políticas públicas e leis distritais voltadas à segurança das mulheres. Além disso, o órgão propõe que a auditoria avalie a aplicação de normas nacionais — como a Constituição Federal, a Lei Maria da Penha e a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres —, especialmente em relação a “combate, prevenção, assistência e garantia de direitos, bem como o desempenho dos órgãos públicos responsáveis e suas ações, na medida de suas atribuições”.

Presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no DF, Nildete Santana considera um equívoco a criação de leis no país sem o cuidado com a efetivação delas. “Há uma inflação de medidas legislativas, mas não o acompanhamento das normas por parte do Executivo. E há falhas na cobrança, especialmente das medidas preventivas”, argumenta. “Campanhas específicas, como as das semanas (temáticas), são importantes, mas têm de ser o pontapé inicial, não só uma semana.”

Nildete ressalta que a percepção de que as leis não são efetivas é reflexo do aumento da quantidade de feminicídios e de casos de violência contra a mulher. Além disso, ela critica o fechamento da Casa da Mulher Brasileira e o excesso de leis. “São inúmeras. Muitas vêm com um ou dois artigos. Fica difícil. Uma medida pode ser complementar à outra ou pode haver choque entre elas. Temos um dos melhores sistemas legislativos do mundo, só que, realmente, a maioria delas (normas) não é cumprida ou é cumprida parcialmente”, avalia.

Discriminação

No Distrito Federal, a Lei nº 417/1993 trata da punição contra estabelecimentos comerciais, industriais, entidades, representações, associações, sociedades civis e empresas prestadoras de serviços que, “por atos de seus proprietários ou prepostos, discriminem mulheres em função de seu sexo, ou contra elas adotem atos de coação ou violência”. Publicitária e advogada, Iara Rezende, 57 anos, sentiu na pele como foi passar por um tratamento diferenciado no trabalho pelo fato de ser mulher.

Ela lembra momentos em que sofreu discriminação por parte dos próprios colegas de trabalho: “Eu tinha ganhado um prêmio por um roteiro de cinema que criei. À época, todos me elogiaram. Depois disso, eu assumiria um cargo mais alto dentro da instituição, mas um homem chegou, e o escolheram. Ele não tinha nenhuma premiação, mas o selecionaram pelo simples fato de ser homem”, relata. “O primeiro questionamento dele sobre mim era se eu tinha filhos ou se era casada, para ‘não causar prejuízo à empresa’. Fiquei irritada, mas não sabia como reagir.”

Quando começou a atuar na advocacia, Iara ganhou mais consciência sobre o papel e o reconhecimento da mulher na sociedade. “Comecei a observar situações e a ouvir relatos de pessoas que sofreram violência moral, física e até sexual. Isso mexeu comigo. Descobri que a mulher tem um poder inacreditável de formação de ideias e culturas”, disse. Hoje, ela frequenta grupos de apoio à valorização feminina e promove rodas de conversa. “Todos os dias, enfrentamos uma luta. O que mais vemos são as próprias mulheres tratando umas às outras sem compreensão. Precisamos mudar isso com o diálogo.”

Pertencimento

Na área da educação, dispositivos estabelecem a adoção de medidas de valorização das mulheres, combate ao machismo e ensino de noções básicas sobre a Lei Maria da Penha. A Secretaria de Educação informa que há projetos em andamento — com debates e cursos para professores —, além de um documento, previsto para ser concluído em 2020, cujo objetivo é “balizar o trabalho pedagógico dos educadores” e focar no empoderamento feminino e no combate ao machismo. “As escolas trabalham as ações ligadas às questões de gênero (combate à homofobia, ao machismo, por exemplo) e noções básicas sobre a Lei Maria da Penha de maneira transversal dentro das disciplinas do currículo escolar”, garante a pasta.

Diretor do Centro Educacional (CED) 310 de Santa Maria há três anos, Wagner Lemos, 49, acredita que levar o tema para a sala de aula é fundamental. A unidade onde ele atua ficou em segundo lugar na premiação Maria da Penha vai à Escola, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), devido à execução de projetos com a equidade de gênero como proposta. “(Com as iniciativas desenvolvidas,) a gente diminui a evasão escolar, a desistência, e consegue mediar conflitos familiares. São projetos que resgatam alunos. Criamos uma escola com personalidade autônoma, em que há uma sensação de pertencimento e é a extensão da casa deles”, comenta Wagner.