Valor Econômico, n. 4992, 02/052020, p. A18

"Fracassamos", diz prefeito de Manaus

Cristiane Agostine

“Fracassamos”. É assim que o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB), resume sua atuação e a do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), no combate ao novo coronavírus no Estado. A menos de duas semanas do pico de casos de covid-19 previsto para a cidade, em meados de maio, o prefeito reclama da falta de adesão às medidas de distanciamento social, com uma média de 40% do índice de isolamento na capital, e diz que o comércio e os serviços no município nunca deixaram de funcionar, apesar dos decretos e recomendações do prefeito e do governador.

A capital amazonense viu a média de mortes diárias quadruplicar em três semanas, com 142 óbitos em um único dia - antes, eram entre 20 e 30. Entre 8 e 28 de abril, 1.966 pessoas morreram, sendo 151 oficialmente registradas por covid-19. Antes da pandemia, em média, eram registrados 630 óbitos em três semanas. O prefeito diz que a subnotificação é grande e que as mortes registradas como causa indeterminada, síndrome respiratória ou pneumonia devem ser “traduzidos” como covid-19. Em abril, os óbitos cresceram 179,5% em comparação com o mesmo período de 2019.

Mais de um terço das pessoas morre em casa, sem auxílio médico. Quem é atendido pelo Samu tende a ficar horas circulando dentro da ambulância à espera de uma vaga em um hospital. Não raro, faltam maca e oxigênio para receber o paciente. Os sistema de saúde e funerário colapsaram e o cenário é desolador: câmeras frigoríficas em hospitais e cemitério, caixões enfileirados em valas comuns, famílias abrindo caixões lacrados para terem certeza de que estão enterrando seus entes queridos e corpos que chegaram a ser empilhados nas covas.

 

Abrir a economia será entregar as pessoas para a morte. Só vai complicar a situação dos hospitais e cemitérios”

 

O Amazonas tem a maior taxa de incidência do novo coronavírus no país. No Estado, foram registradas 548 mortes e 6.683 casos confirmados de covid-19 - concentrados na capital. Dos leitos de UTI, 94% estão ocupados.

Para Virgílio, Manaus está a um passo de registrar o drama enfrentado por Guayaquil, o epicentro de covid-19 no Equador. Com 71% dos casos do país, a cidade equatoriana é marcada por corpos abandonados nas ruas ou queimados em cemitérios, caixões de papelão, corpos transportados em caminhões improvisados e urubus sobrevoando o município.

O prefeito quer mostrar Guayaquil como exemplo a não ser seguido e usa imagens da cidade equatoriana em uma campanha publicitária para tentar convencer a população a ficar em casa.

Em seu segundo mandato consecutivo e terceiro como prefeito, o ex-senador e ex-deputado diz que a capital tem apenas 38 leitos de UTI gerenciados pelo município, voltados para pacientes com covid-19, mesmo com uma população estimada em 2 milhões pelo IBGE (e entre 2,5 milhões e 3 milhões pelo prefeito). No interior, não há leitos de UTI. Virgílio diz que estava “numa posição confortável” antes da pandemia em relação ao sistema municipal de saúde, apesar da pressão de outras doenças como a dengue, o H1N1 e influenza.

 

Adversário político do governador do Estado, que é alvo de um pedido de impeachment aberto na Assembleia Legislativa do Amazonas, Virgílio evita alimentar os desentendimentos com Wilson Lima nesta crise. O prefeito diz ter buscado uma trégua com o governador, aliado do presidente Jair Bolsonaro, e busca atuar em conjunto com o Estado. No entanto, Lima pressiona pelo fim da quarentena - proposta rejeitada por Virgílio.

"Não é compreensível a demora do governo federal. Estamos a dias do pico, que pode ser uma coisa bárbara”

Sem ajuda do governo federal, Virgílio gravou vídeos com pedido de ajuda a países do G-7 e outras nações ricas. Com o ‘SOS Amazonas’, a mensagem é clara: é preciso ajudar a população para que ela não derrube a floresta, em busca de recursos para a sobrevivência.

Com o agravamento da crise sanitária no Estado, ontem o ministro da Saúde, Nelson Teich, fez sua primeira viagem desde que assumiu a Pasta e foi a Manaus. Hoje, o prefeito e o ministro devem se reunir e visitar hospitais da capital.

A seguir, os principais pontos da entrevista ao Valor, concedida por telefone na quinta-feira:

Fracasso

Admito o fracasso. Fracassamos aqui, o governador e eu. No Amazonas não acataram nossas recomendações, os decretos não foram obedecidos, o povo está nas ruas. Dia de sábado é dia de festa. Ainda não caiu a ficha das pessoas. O que garante essa tranquilidade de que não vai pegar o covid-19 se está vendo na televisão, nos jornais a crise no sepultamento, nos hospitais, se está vendo o vizinho pegar a doença? Uma das razões é que muitos acham que covid-19 é doença de rico, que não dá em pobre. Estão vendo a morte de um vizinho, que não é rico, mas acreditam que não vão pegar. Outra razão é que a quarentena tira a liberdade, sufoca. A gente perde a noção do tempo, troca o dia, o mês.

Remando contra a maré
Tem mais uma razão, que é o exemplo do presidente. Atribuo muito ao fato de [o presidente Jair] Bolsonaro não ter entrado no comando da mobilização nacional. A pregação dele é: ‘vá para a rua’, ‘é uma gripezinha chinesa’. Todos os dias faço o apelo ‘fique em casa’, falo que o distanciamento social é o nosso único plano. Peço para quem mora na periferia ficar no barraco, porque são os mais suscetíveis. Mas quando o presidente rema contra, fica mais complicado. O presidente pode estar em alta ou baixa, mas nossa sociedade gosta muito de ter um líder, um chefe.

Fim da quarentena
Não aceito que a gente abra uma economia que, na verdade, nunca fechou. Com exceção dos primeiros momentos, a economia funcionou de algum jeito, talvez até aumentando a clandestinidade, o informal. Nunca cessou, nunca houve adesão de verdade. Não podemos marcar data para avaliar o fim da quarentena. Propus 15 de maio, porque o pico dos casos ainda vem e vem forte. O governador fala que já estamos no pico e quer abrir antes. Abrir a economia significa entregar as pessoas para a morte. Só vai complicar a situação dos hospitais, dos cemitérios. Não tenho problema com ele, mas se quiser abrir no pico vou dizer que não concordo. Não quero ser o responsável pelas mortes e a abertura agora não vai aliviar a crise econômica. Vem uma brutal recessão.

Lockdown
Nem pense em lockdown porque será barbárie. As pessoas vão buscar com as próprias mãos, na marra aquilo que querem, arrombando loja. Me parece que temos que colocar a faca nos dentes e aguentar firme e ver se até 15, 16 de maio conseguimos mudar a curva da doença, que está em ascensão.

Guayaquil

Vamos jogar o mais duro possível até dia 15 de maio, com comerciais de televisão, de preferência até em conjunto com o governo do Estado, para mostrarmos que se as pessoas querem viver o que Guayaquil viveu ou coisa pior, que fiquem nas ruas. Precisamos nos preparar para o pico, senão será uma desgraça, uma barbárie realmente. Temos duas semanas que serão decisivas para nos prepararmos para o confronto.

Briga com o governador
Procurei o governador e disse: ‘Temos que colocar uma pedra em cima. Você é muito novo na vida política’. Vamos trabalhar o máximo possível juntos, porque vamos continuar fracos mesmo se nos unirmos. Vamos lançar umas peças agora focando, mostrando Guayaquil, mostrando miséria humana, mostrando tudo e perguntando se as pessoas  querem passar por isso.

Subnotificação

Não sei se devemos multiplicar [os casos] por dois, três, cinco, sete, mas tenho certeza da subnotificação. Manaus tinha uma média de 20 a 30 enterros em época de gripe sazonal. Não passava disso. Agora me deparei com 66 mortes. Depois 88, 100, 106, 120 e chegou a 142. Esmiuçando os dados, vemos que os hospitais, talvez por pressa, dizem há ‘x’ casos de pneumonia. Mas não consigo entender tanta pneumonia que não seja por covid-19. Tem um percentual alto de causas não identificadas, de mortes por problemas respiratórios que eu também não consigo tragar. Deveria traduzir tudo isso como covid-19. Tenho feito o combate à subnotificação pela obrigação que temos com a transparência e porque os Estados e municípios precisam de ajuda. Não podem fazer nada diante da indiferença do governo federal.

Governo federal

Tenho recebido promessas, compromissos, mas até agora nada. Preciso de remédios, de profissionais, EPIs, voluntários, tomógrafos. Temos um tomógrafo no hospital de campanha. Se tivermos três, quatro, cinco tomógrafos em UBS, UPA estratégicos, essas unidades farão triagens e isso diminuirá a pressão sobre os hospitais. Pedimos testes verdadeiros, não aquele que dá falso negativo e ilude as pessoas. Até agora não chegou nada. Há um vácuo presidencial. Com a situação crítica de Manaus, não era nem para eu pedir ajuda. Era para eles oferecerem. É incompreensível a demora do governo federal. Estamos a dias de chegar no pico, que pode ser uma coisa bárbara.

Floresta no chão

Estou pedindo, em um vídeo, ajuda ao G-7 e mais alguns países que são ricos, como a Coreia do Sul. “SOS Amazonas, salvem o povo que protege a grande floresta”. Peço como alguém que é de um Estado que presta serviço diário ao mundo, que ajuda a combater o aquecimento global. Precisamos de recursos para hospital de campanha, que vem 

de terceiros, profissionais, medicação, EPI, tomógrafos. Como não chega nada do governo, recorro à ajuda internacional. Manaus é símbolo da Amazônia. Passo o dia falando com a imprensa internacional, que quer saber o que acontece com quem mora na floresta. A situação é muito grave e vamos desembocar numa severa crise econômica depois. É muito impor

tante que protejam o povo de um Estado, de uma região que se não tiver outra alternativa, vai agredir a floresta. Ninguém deixa de sustentar filho se tiver outra alternativa. É um quadro doloroso, muito triste. Lamento.

38 leitos de UTI
Manaus tem no mínimo 2,5 milhões de habitantes, quase 3 milhões e temos 38 leitos de UTI para covid-19, que estão no nosso hospital de campanha. Todo dia, abrimos uma média de 1,5 leito. Temos quase 100 leitos e queremos chegar a 279. Acho que temos 35 respiradores. A prefeitura só fazia assistência básica de saúde e tinha uma maternidade. Cerca de 30%, 33% das mortes são em casa, de pessoas que não foram atendidas pela rede de saúde, que não tinham como ir para a rede privada.

Sistema precário
O sistema de saúde era precário, mas estávamos avançando na cobertura, na assistência básica. Estava numa posição confortável porque dizia: ‘média e alta complexidade’ são de responsabilidade do Estado. Eu administrava um único hospital, uma maternidade. Mas agora tivemos que fazer um hospital de campanha e temos de precaver outras doenças porque é época de dengue. Seguidos governos estaduais foram enfraquecendo a Secretaria de Saúde. O Samu, por exemplo, fica horas rodando com paciente atrás de vaga em hospital estadual.

Rezar para não morrer
O interior não tem UTI. As pessoas têm que torcer para não ter covid-19 ou ter de uma forma leve, senão morre. É muito pouco. O interior tem 1,6 milhão de pessoas.

Chantagem na hora da morte
Fico com o psicológico abalado ao ter o sindicato das empresas funerárias dizendo que Manaus tem caixão para dez dias. Estoquei milhares de caixões, tenho muitos caixões que comprei na praça de Manaus. A chantagem é para o particular. O caixão custa x e ele vai vender por 4x, 5x.

Matança de indígenas
Na capital, temos uma certa comunidade indígena que está entrosada com a sociedade, sabe procurar UBS, UPA e hospital. No interior, continuam muito gregários, juntos, reunidos. Se bater o coronavírus num local habitado por muitos índios, vai ser matança, genocídio. A gripe para eles é algo muito sério.

Corpos empilhados

O enterro de corpos empilhados é errado e mandei suspender. Foi feito da cabeça das pessoas que estavam ali, que negava o respeito. Hoje temos uma média de 120 enterros. Não vamos abrir um novo cemitério. Estamos usando todos os cemitérios de Manaus e um cemitério de uma cidade vizinha. Vamos aumentar cremações. Um empresário me procurou com a ideia de fazer gavetas. E vamos divulgar imagens bem apimentadas, mostrando a desgraça que as pessoas vão viver. Se não fizer o isolamento social, vamos ter aqui a desgraça de Guayaquil.