Correio Braziliense, n. 20627, 13/11/2019. Mundo, p. 13

Outra greve contra Piñera



Um dia depois de anunciar a disposição de dar a largada para um processo de revisão profunda da Constitução legada pela ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), o presidente do Chile, Sebastián Piñera, se via ontem às voltas com uma greve geral convocada por mais de 100 organizações sindicais. Foi a segunda paralisação convocada ao longo de 25 dias quase ininterruptos de protestos contra a política socioeconômica do governo, inciados com uma explosão de violência em resposta ao aumento das tarifas de metrô.

A mobilização foi sentida especialmente na região da capital, Santiago, com piquetes, barricadas e focos de incêndio interrompendo o tráfego em alguns acessos à cidade. A imprensa chilena registrou incidentes em ao menos 10 pontos da região metropolitana, mas ônibus e metrô circulavam com relativa normalidade. No aeroporto, pousos e decolagens não sofreram alterações.

“Convocamos a paralisar totalmente as tarefas produtivas”, diz a convocação assinada pela Mesa Social, que reúne a Central Unitária dos Trabalhadores (CUT) e os sindicatos nacionais de professores, profissionais da saúde pública, portuários e aeroportuários. A Confederação Nacional do Cobre, que representa os trabalhadores terceirizados da mineração, aderiu à paralisação, assim como associações dos transportadores particulares e taxistas, que vêm protestando quase diariamente contra o pedágio urbano.

As escolas públicas aderiram em massa à greve, que deixou sem aulas também os alunos da rede particular — em alguns casos, por medida de segurança. A maioria das universidades está com as atividades suspensas desde o início das manifestações, que na sexta-feira entrarão pela quinta semana. Apesar do envolvimento de dezenas de organizações sociais, porém, o movimento segue sem ter um comando claro ou mesmo uma lista definida de reivindicações. Embora contem com a solidariedade de socialistas, comunistas e outras forças de esquerda, os manifestantes trocaram os emblemas de partidos políticos pelas bandeiras chilenas ou da nação indígena mapuche.

Piñera, que de início respondeu aos distúrbios com a decretação do estado de emergência e a convocação dos militares para policiar as ruas — pela primeira vez desde a redemocratização —, recuou e se desculpou com os chilenos pela sua “falta de visão”. Revogou as medidas de exceção, após um saldo de 20 mortos, centenas de feridos e mais de 1,5 mil detidos. Mudou oito dos 24 ministros, principalmente no núcleo político do governo, e iniciou um processo de diálogo com a oposição.

Na noite de domingo, o presidente acenou com a proposta de convocar um processo constituite para a revisão da carta. Aprovado em 1980, em plebiscito considerado distorcido pela repressão da ditadura, o texto sofreu mais de 200 alterações em 40 artigos. Classificada pelos opositores como a “mãe de todas as desigualdades”, a Constituição pinochetista não reconhece a responsabilidade do Estado com a saúde e a educação. Ao lado do baixo valor das aposentadorias, o custo elevado dos serviços, decorrente do modelo privatista adotado desde o regime militar, é um dos alvos centrais da onda de protestos.

Sem liderança

Identificado nas redes sociais pela hashtag #Chiledespertó, o movimento tem apoio de 75% da sociedade, segundo mostram as pesquisas de opinião. Sem convocação formal por parte de partidos, sindicatos e outras forças organizadas, a multidão se dirige para o centro de Santiago com bandeiras e cartazes improvisados, lemas difusos e criatividade na confecção de máscaras e pinturas de rosto. Dentro da diversidade, em geral festiva, grupos isolados de radicais mascarados têm buscado sistemticamente o confronto com as forças de segurança, embora a violência dos primeiros dias tenha dado lugar, paulatinamente, a expressões pacíficas do descontentamento com o governo.

“Estamos diante de um fenômeno em que a figura do líder tradicional está em segundo plano”, avalia o pesquisador Antoine Maillet, do Centro de Estudos de Conflitos e Coesão Social (Coes) e acadêmico do Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile. “Cada um dos manifestantes é seu próprio líder e tem uma história para contar.”

Frase

“Estamos diante de um fenômeno em que a figura do líder tradicional está em segundo plano. Cada um dos manifestantes é seu próprio líder e tem uma história para contar”

Antoine Maillet, pesquisador da Universidade do Chile