Correio Braziliense, n. 20716, 10/02/2020. Política, p. 4

PL fere a Constituição

Cláudia Dianni


 

Inconsistência constitucional e a não observância da Convenção 169, de Direitos Humanos, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), serão os dois principais desafios do projeto de lei assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, na semana passada, que propõe a liberação da mineração e da geração de energia hidrelétrica em terras indígenas, além de outras atividades, como produção de petróleo e gás. Na opinião de juristas, essas duas falhas matam o projeto. Para parlamentares, será difícil o texto passar no Congresso. Já ambientalistas apontam que o PL colide com os compromissos do Brasil no Acordo de Paris, ao abrir as portas para a liberação de carbono na atmosfera em quantidades sem precedentes, aprofundando a crise climática.

Estabelecida em 1989, a Convenção da OIT foi assinada pelo governo brasileiro em 2004. Ela determina a “consulta prévia, de boa-fé, bem informada e tendente a chegar a um acordo”, ou seja, antes de iniciado qualquer processo decisório que envolva terras e comunidades indígenas, as partes devem dialogar, e as posições iniciais podem ser revistas. Portanto, o projeto pode não ser realizado.

Ocorre que o governo federal não realizou a consulta, conforme declararam, em nota, as principais entidades que representam as comunidades indígenas: Associação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que repudiaram o projeto.

“O PL do governo faz uma interpretação equivocada da Constituição em vários pontos. Além disso, os indígenas têm usufruto exclusivo sobre suas terras, segundo a Constituição. A possibilidade de utilização minerária depende de muitas condicionantes que o PL não prevê”, disse o jurista Carlos Marés, que presidiu a Fundação Nacional do Índio (Funai) entre 1999 e 2000.

Para o advogado Raul Valle, do WWF, a exploração mineral e a instalação de hidrelétricas em terras indígenas requerem lei específica regulamentando a atividade. No entanto, além de o projeto tratar única e exclusivamente de atividades de infraestrutura, faltou a consulta. “A Constituição diz que as convenções e os tratados internacionais que o Brasil assina são incorporados ao direito brasileiro com o mesmo peso da Constituição nacional. A discussão da Convenção da OIT pode chegar ao Supremo Tribunal Federal, que ainda não se debruçou sobre o tema. Portanto, o governo deveria cumprir a convenção que assinou”, afirma.

Outro problema do projeto, segundo Valle, é que o documento fala da viabilidade de mineração e não do impacto ao meio ambiente. Assim, é precário. “Falta boa-fé. O PL deveria trazer as condições sob as quais os projetos podem acontecer. Há projetos assim, de hidrelétricas, por exemplo, tramitando no Congresso, ou seja, com as informações mínimas necessárias”, afirma.

Ele lembra que o detalhamento teria de ter sido feito antes mesmo da consulta às comunidades indígenas, para que pudesse ser apresentado. “Achar que terras indígenas são boas para mineração e geração de hidroeletricidade é um pensamento do século 10. No século 21, a ciência já demonstrou que terras indígenas são fornecedoras de serviços ambientais, que mantêm o equilíbrio climático”, lamenta.

Polêmica

Primeira e única deputada federal indígena, Joênia Wapichana (Rede-RR) avisa que o embate no Congresso será difícil. “Há muitos anos, a mineração em terras indígenas tem sido colocada na pauta e já houve diversas tentativas, que nunca chegaram a um consenso. É polêmico, porque é um projeto que vai afetar a vida dos povos indígenas. Todas as vezes, isso foi proposto de forma inadequada”, ressalta. Ela afirma que haverá divisão, por existirem muitas questões técnicas e jurídicas envolvidas. “Não se consegue avançar, porque não há respeito aos direitos constitucionais, não se observa a Convenção da OIT, que é basilar para o início do diálogo”, destaca.

O presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara, deputado Rodrigo Agostinho (PSB/SP), também espera muita discussão em torno do PL a partir desta semana. Ele lamenta que a polêmica seja instaurada quando a Casa já estará ocupada com projetos importantes, como as reformas tributária e administrativa.

“É um tema que vai dar bastante debate, pois tem problemas de constitucionalidade. Até porque o artigo 231 da Constituição já trata desse assunto de uma maneira diversa. No ano passado, dois projetos tentaram fazer alteração na Constituição para tratar dessa questão e nenhum dos dois chegou a ser aprovado em plenário”, conta.